Os indígenas krenak, habitantes tradicionais do território localizado às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, buscam na Justiça a reparação financeira pelo chamado etnocídio sofrido durante a ditadura militar, uma história marcada por episódios de torturas, prisões arbitrárias, trabalhos forçados, estupros, desaparecimentos e exílio forçado.
O pedido é objeto de uma ação civil pública, de autoria do MPF (Ministério Público Federal), entregue à Justiça Federal no dia 28 do mês passado. A Folha teve acesso ao documento.
Na ação, que narra parte da tragédia vivida pelo povo krenak nos anos 1960 e 1970, o MPF pede uma reparação coletiva de R$ 10 milhões para os indígenas expulsos de suas terras originais, no município de Resplendor (MG), e que passaram a viver na aldeia Vanuíre, no município de Arco-Íris, no interior de São Paulo, a mais de 1.200 km de distância de seu lar original.
A Procuradoria pleiteia, ainda, o pagamento individual de R$ 50 mil para 22 indígenas, entre os quais estão anciãos ainda vivos e descendentes de vítimas, somando mais R$ 4,4 milhões em indenizações financeiras.
A AGU (Advocacia-Geral da União), que faz a defesa da União nesses casos, já foi comunicada sobre o assunto e vai entregar a sua defesa. O julgamento não tem data para acontecer.
Os krenak foram expulsos à força de seu território tradicional. Em 1969, foi instalado no local onde viviam o chamado "Reformatório Krenak", um espaço que, na realidade, era usado para diversos tipos de violência contra os indígenas. Essas ações contavam com a atuação da Guarda Rural Indígena, que era gerenciada com participação direta da própria Funai (Fundação Nacional do Índio) e de autoridades estaduais e federais.
A violência chegou a ser institucionalizada, inclusive com registro público de tortura durante cerimônia oficial, com imagem de indígena preso em pau-de-arara. O interesse nas terras, na época, era o de abrir espaço para a mineração.
Muitos indígenas foram removidos compulsoriamente e retirados sob escolta militar. Colocados em vagões de carga, foram enviados a uma propriedade a cerca de 300 km de distância (Fazenda Guarani), em Carmésia (MG), uma terra improdutiva doada pela Polícia Militar de Minas Gerais. Neste local, viveram sob vigilância, em regime quase carcerário, durante cerca de oito anos.
Parte da etnia fugiu e se deslocou para a aldeia Vanuíre, no interior de São Paulo, onde já viviam indígenas de outras etnias. Cacique da aldeia, Lidiane Damaceno Krenak diz que muitos de seus parentes viajaram três meses pelas estradas e terras até chegar ao local, fugindo da violência militar.
"Eu nasci em Vanuíre, mas tenho avós, pais, tios e primos que viveram essa tragédia. Muitos não conseguiram voltar para lá, por causa do trauma e da tristeza que tudo isso representa", disse à Folha.
Vivendo até hoje fora do seu território ancestral, os krenak da aldeia Vanuíre decidiram entrar com a ação na Justiça para cobrar a reparação histórica, moral e social. Lidiane Damaceno está entre os 22 indígenas que pedem indenização individual.
"Nada pode apagar ou reparar tudo o que nosso povo viveu, mas pode servir como um gesto mínimo para ajudar nossas famílias a seguir adiante", afirmou.
Em 2021, a Justiça já havia reconhecido uma ação movida pelo MPF em Minas Gerais desde 2015 e determinou a responsabilização da União, do Estado de Minas Gerais, da Funai e do ex-capitão da Polícia Militar de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro por violações aos direitos dos povos indígenas, especialmente os krenak, durante a ditadura militar.
O capitão Pinheiro foi responsável pela implementação da força paramilitar composta por indígenas. Ele foi denunciado pelo MPF em 2017 por crime de genocídio contra o povo krenak. Morreu em 2023, antes de ser julgado.
Esse processo inicial movido pelo MPF não incluía valores financeiros. Tratava-se de um reconhecimento público e de pedido de desculpas, além da determinação para que a Funai finalizasse o processo de identificação e delimitação da terra indígena krenak de Sete Salões (MG).
A ação incluía medidas para aqueles que ficaram na aldeia Vanuíre, por isso, diz Lidiane Damaceno, houve a decisão de entrar com nova ação indenizatória.
Morador de Resplendor (MG), o filósofo e escritor Ailton Krenak disse à Folha que soube da nova ação do MPF pela reportagem, mas comemorou o andamento da nova medida apresentada pelos indígenas da etnia que vivem hoje no interior de São Paulo.
"Sobre a ação inicial, a verdade é que não aconteceu nada. Se o capitão Pinheiro estivesse vivo, talvez estaria rindo de nós por aí. Então, vejo essa nova ação do Ministério Público como algo bem-vindo, e que a Justiça perceba que deixou passar 50, 60 anos de abuso e agora está tentando correr atrás", afirmou.
Eleito membro da ABL (Academia Brasileira de Letras) em abril do ano passado, ele cita famílias indígenas de Resplendor que, em seu entendimento, também poderiam ter sido incluídas na ação.
"Eu torço para que a Justiça compreenda que esses valores não compensam o sofrimento, os danos, a descontinuidade da vida que foi imposta a essas famílias todas, inclusive aos que já morreram. A minha pergunta é por que eles não entram na lista de reparação. Eles também têm direito", disse.