Quando estava se aproximando dos 16 anos, a assistente de marketing Jéssica Borges e sua mãe consultaram um médico ginecologista, pois ela ainda não havia menstruado. O fato se tornou uma preocupação quando a sua irmã mais nova, Jaqueline, menstruou aos 12 anos.
Após fazer alguns exames, Jéssica descobriu que nasceu sem útero devido a uma doença rara, a síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser (MRKH). A primeira menstruação de Jéssica só aconteceu há um mês, aos 34 anos, após receber o órgão de sua irmã. Esse foi o primeiro transplante de útero bem-sucedido realizado entre pessoas vivas na América Latina.
Ela conta que começou a se sentir uma estranha com a constatação de que não tinha o órgão. "Eu queria poder entender o que era essa síndrome", diz. Ela fez acompanhamento com psicólogo para ajudar a compreender a situação.
A doença atinge uma em cada 4.000 mulheres, explica o professor Dani Ejzenberg, médico supervisor do Centro de Reprodução Humana do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Universidade de São Paulo).
"As pacientes muitas vezes acabam descobrindo pela falta de menstruação, quando chegam na puberdade, mas podem ter outras malformações associadas, como urinária, cardíaca e óssea", diz ele, que fez parte da equipe que acompanhou o transplante de Jéssica.
Jéssica afirma que uma frase a marcou quando descobriu que não podia gerar filhos. "O médico disse para eu não ficar triste porque, quem sabe, depois de uns dez anos a medicina evoluísse e eu teria a possibilidade de engravidar." E foi o que aconteceu.
Existem outras possibilidades, o que deixou Jéssica menos desesperada. "A minha família sempre foi uma família grande, então eu já tinha esse sonho [de ter filho]." Para quem nasce com uma doença como essa, o transplante entra como uma terceira opção. Primeiro, é possível ter filhos pela adoção ou então por útero de substituição —conhecido popularmente como barriga de aluguel.
Foi por meio de um grupo do Facebook de mulheres com síndrome de Rokitansky que o Hospital das Clínicas entrou em contato com ela para participar de um estudo de transplante uterino. A instituição estava em busca de casais que quisessem ter filhos. No início, ela e o marido não sabiam o que era, mas resolveram tentar.
Jéssica é casada há 13 anos e afirma que seu marido sempre a apoiou e, desde quando se casou, sempre foi sincera com ele de que não poderia gerar um filho. Ela afirma que quando surgiu a ideia do transplante, ele ficou com medo. "Mas eu confio demais nos médicos", afirma.
Ela foi entrevistada, passou por processo de seleção e de muitos exames para ver se era apta a continuar no estudo. Jéssica ficou entre as cinco escolhidas. Uma delas participou do transplante de útero a partir de uma doadora falecida que gerou um bebê saudável, nascido em 2017, no qual o HC-FMUSP foi pioneiro. No mundo todo, já foram feitos mais de 100 transplantes do tipo e há mais de 50 crianças nascidas após a cirurgia.
O projeto de transplante de útero está sendo planejado desde 2013 com o auxílio de uma equipe sueca liderada pelo professor Mats Brännström. Ele é pioneiro em transplantes uterinos no mundo, tendo realizado o procedimento que resultou no nascimento do primeiro bebê gerado em um útero transplantado, em 2014.
O estudo do HC-FMUSP foi interrompido pela pandemia da Covid. Quando retornou, Jéssica sugeriu a Ejzenberg que a doadora fosse a sua irmã, que sempre afirmou que lhe daria o órgão. "Bem antes de ela ter filho, ela queria doar", diz.
O assunto era recorrente na família, mas Jaqueline não tinha filhos e, por isso, Jéssica falava que ela não podia doar, antes mesmo de a possibilidade ser real. Agora, Jaqueline já tem dois filhos. "Eu me senti muito especial por ter uma irmã para fazer isso por mim. E ela sempre teve a certeza de que ia fazer."
O transplante aconteceu no dia 17 de agosto e representou um avanço significativo para a área. "A gente espera progredir para uma terapia reconhecida e autorizada, e aí sim poderemos fazer em um número maior de mulheres", diz o professor Wellington Andraus, coordenador de transplante de órgãos do aparelho digestivo do Hospital das Clínicas.
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Antes da cirurgia, foram coletados óvulos de Jéssica —ela tinha os ovários, só não tinha o útero— e espermatozoides do marido. Com o material, foi feita a técnica de fertilização in vitro (FIV) para fecundar os óvulos e os espermatozoides em laboratório, formando embriões que serão transferidos posteriormente para o útero.
"É importante, antes do transplante de útero, garantir que a mulher que vai receber tenha embriões congelados de boa qualidade", afirma Ejzenberg.
A paciente irá aguardar de quatro a seis meses para haver uma cicatrização completa, verificar se não há nenhuma rejeição e então começar a transferência dos embriões. Essa é a parte para a qual Jéssica está mais ansiosa.
"O sucesso total vai ser quando a paciência engravidar e dar à luz", diz o professor Andraus.
Ejzenberg pontua que, apesar de já ter existido casos em que o útero foi mantido na paciente, o recomendado é que o órgão não fique mais do que cinco anos com ela devido ao uso das medicações para evitar a rejeição.
"É um transplante que permite a possibilidade de a mulher experimentar a gestação e o parto. Mas o útero não é um órgão essencial, então ele pode ser retirado depois que a pessoa completou o seu desejo", diz.
Enquanto isso, Jéssica conta os dias. "Espero estar com o meu bebê no colo em breve", afirma Jéssica.
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