Entre muros de tijolos, tão comuns nas comunidades brasileiras, paira uma enorme cruz de madeira. O lugar montado dentro do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, parece uma pequena capela, que no lugar de vitrais sagra em suas paredes obras de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O santíssimo altar é substituído por um enorme letreiro em inglês que diz "arrependa-se, e não peque mais!".
O mandamento duplicado e impresso em dois quadros negros é a obra "Repent, and Sin no More!", de Andy Warhol, o grande criador da arte pop nos Estados Unidos. O trabalho foi emprestado pela Tate, o museu nacional de arte moderna do Reino Unido, para a exposição "Histórias LGBTQIA+", que encerra a programação deste ano no Masp com 150 obras de artistas que repensam a evolução da arte sob uma perspectiva queer.
A espécie de capela e a cruz são de Ventura Profana, artista e pastora trans que mostra, em suas obras, como corpos queer são condenados à repressão por normas religiosas —especialmente no momento em que igrejas neopentecostais ampliam sua influencia sobre comunidades vulnerabilizadas pelo país.
Dentro da capela estão também o secular "São Sebastião na Coluna", do renascentista italiano Pietro Perugino, e "São Sebastião de Cabeça para Baixo", de Leonilson, um dos principais artistas brasileiros contemporâneos.
O espaço remete à música "Like a Prayer", de Madonna, um hino de libertação para a comunidade LGBTQIA+ na passagem das décadas de 1980 para 1990 —o mesmo período em que a comunidade foi afetada pela epidemia da Aids.
A crise do HIV é o ponto de partida da mostra, que abarca especialmente artistas da década de 1980 em diante. A escolha tem a ver com o impacto profundo do vírus na comunidade, que se reorganizou para enfrentar a doença diante da rejeição social e negligência dos governos.
"Cartazes estéticos e políticos viraram modelo de manifestação, e a revolta mundial, um modelo para as marchas do orgulho", diz Leandro Muniz, curador-assistente da exposição, que inclui pôsteres do coletivo americano Gran Fury. Os artistas que morreram por complicações da Aids têm seus nomes emoldurados por um retângulo preto, em referência a um cartaz do artista Félix Gonzalez-Torres.
Trabalhos gráficos, aliás, são comuns entre artistas queer que, deixados às margens do circuito da arte durante a história, produziram usando materiais mais baratos e de fácil acesso. Não por acaso, a primeira sala da mostra é dedicada a criar uma espécie de biblioteca, com zines de coletivos latino-americanos.
Reservar um núcleo à arte política é uma escolha que se repetiu também em outras exposições do museu voltadas a repensar a história da arte através da experiência social, por uma perspectiva mais ampla e diversa, como "Histórias Afro-Atlânticas", "Histórias da Sexualidade" e "Histórias Indígenas".
No ano passado, a Bienal de São Paulo também reservou um de seus ambientes à arte ativista. A 35ª edição foi a primeira a pôr em evidência artistas queer, muitos deles com trabalhos que referenciavam outros membros da comunidade —algo que se repete na exposição do Masp.
O primeiro núcleo da mostra é voltado a símbolos do movimento. No trabalho "Butch Heroes", de Ria Brodell, três mulheres lésbicas que viveram em séculos passados são representadas em três pinturas pequenas e delicadas. Xica Manicongo —a primeira travesti de que se tem registro no Brasil, tirada forçosamente do Congo pelos colonizadores portugueses— virou uma escultura abstrata pelas mãos da paraense Rafa Bqueer, enquanto Rodolpho Parigi faz uma versão do "Abaporu", de Tersila do Amaral, usando botas de látex e a calcinha nos joelhos.
Uma pintura de Roberta Close feita por Adir Sodré, de 1985, anuncia outro núcleo da mostra, dedicada ao sexo. Close foi a primeira modelo trans a pousar nua para a revista Playboy, mas sem mostrar a genitália. Na tela, ela aparece com um pênis fantasiado, colorido e alado —uma provocação à fetichização de pessoas trans.
As obras que abordam o desejo, aliás, não escondem as tensões que o envolvem. A série de pequenas pinturas "Vagalumes", de Adriel Visoto, mostram o interior de uma boate gay, e "O Freddy", foto do colombiano Miguel Rojas, flagra um homem dentro de um cinema pornô. Ambos evidenciam como homens gays vivem sua sexualidade na penumbra de locais públicos, como bares e parques, no limiar do que é socialmente aceito.
Enquanto isso, o sexo aparece sempre de forma contida em obras de lésbicas, que temem o assédio e, ao mesmo tempo, são relegadas a um espaço de não existência. É o caso de "Lesbian Beds", da americana Tammy Rae Carland, uma série de fotografias de camas com lençóis bagunçados que sugerem que algo aconteceu ali.
Já Teresa Margolles fotografou mulheres trans entre as ruínas de um antigo bairro de prostituição para denunciar a hipersexualização e, ao mesmo tempo, a marginalização de travestis. "Sabemos que o Brasil é o país que mais consome pornografia trans e também o que mais mata essas pessoas", diz Muniz, o curador.
Na sala dedicada ao amor, aparecem os retratos de mulheres negras apaixonadas em séculos passados, gerados com inteligência artificial por Mayara Ferrão, e fotos de Zanele Muholi, que mostram duas mulheres nuas dormindo abraçadas.
Já o paquistanês Salman Toor expõe uma pintura que parece dar uma piscadela para as cenas cotidianas do impressionista francês Pierre-Auguste Renoir. Sua tela esverdeada e esfumaçada dá a sensação de embriaguez, enquanto mostra homens que trocam sussurros em público.
A montagem de "Histórias LGBTQIA+" levou também à compra de novas obras para o acervo do Masp. É o caso de "Wall", do chinês Xiyadie, de 1963, adquirido pelo curador chefe do museu, Adriano Pedrosa, durante a montagem da última Bienal de Veneza. Na tela, figuras homoeróticas são feitas com papel recortado, tradição manual ornamental e conservadora.
"Alibã Vuduzento Aquenda Forte", enorme placa de madeira recortada e colorida, de Assume Vivid Astro Focus, pseudônimo do brasileiro Eli Sudbrack, também foi comprada e está exposta em um cavalete de vidro de Lina Bo Bardi, na seção de acervo do museu.