Numa época em que novos documentários sobre artistas da música aparecem o tempo todo, é bom que um deles fuja da fórmula preguiçosa de elencar algumas informações didáticas e filmes de arquivo a declarações de especialistas sobre a obra do biografado. Luiz Melodia (1951-2017) foi uma figura ímpar na MPB e ganha um registro no cinema bem singular.
Dirigido por Alessandra Dorgan e com direção musical da jornalista Patricia Palumbo, "Luiz Melodia: No Coração do Brasil" chega ao circuito com a proposta de concentrar toda a narrativa no próprio cantor. A ideia de "dar voz" a Melodia é levada ao pé da letra. São suas histórias e opiniões que montam o roteiro diante do espectador.
"Eu e a Alê assistimos a muitos documentários de música", afirma Palumbo. "Fazer um filme com gente dizendo ‘ah, eu acho que o Melodia isso ou aquilo’ seria tedioso. Aí veio a ideia de colocá-lo falando, em primeira pessoa." E o primeiro passo foi dado a partir da íntegra de uma entrevista que ela fez com Melodia para um livro lançado em 2002.
Elas se debruçaram sobre a conversa, na época já pautada sobre sua carreira, escolhas na vida, suas posturas. "Eu acho que as canções falam muito sobre quem as fez", acrescenta a jornalista. Quando a amiga falou a ela sobre a vontade de fazer algo em parceria, o nome de Luiz Melodia surgiu na mesma hora. "Eu sou absolutamente louca por Luiz Melodia", diz Palumbo. "Eu acho que ele faz parte de uma turma muito formadora do que é a música contemporânea, ele é parte de um pós-tropicalismo."
Melodia começou sua carreira fonográfica em 1973, com o seminal álbum "Pérola Negra", que surgiu a reboque das gravações da canção de mesmo nome por Gal Costa, no ano anterior, e de "Estácio, Holly Estácio", por Maria Bethânia. Veio em seguida o disco considerado sua obra-prima, "Maravilhas Contemporâneas", e a participação no festival de música Abertura, da TV Globo, levando ao público nacional a canção "Ébano", momento exibido no documentário.
Na verdade, outra caraterística do filme é mostrar quase todas as músicas na íntegra, enquanto produções do gênero costumam oferecer trechos das canções. Isso só enriquece o material. São as canções, misturas ecléticas de rock, samba, blues e o que mais viesse, que trazem todo o talento de Melodia
Alessandra Dorgan não tinha feito antes um longa sobre música, apenas séries. Ao ouvir a entrevista feita pela parceira, sentiu um Melodia livre, falando à vontade sobre sua vida. Ela lembra que Palumbo foi amiga do cantor, mantiveram contato por anos, mas ela, como quem via de fora, apenas escutando as músicas, percebeu ali como o artista foi silenciado.
"Ele foi rotulado, marginalizado, silenciado durante a carreira. E sem nunca perder uma elegância, entende? Aí ficou claro que a gente precisava deixar que ele mesmo contasse sua história", conta a diretora.
Assim, o filme não tem indicações didáticas sobre a vida de Melodia. Os filmes de arquivos, alguns raríssimos, são dispostos cronologicamente, mas sem que se saiba data ou lugar, porque o trabalho de edição de Joaquim Castro dispensa esse tipo de apoio. Aquilo que Melodia narra e canta vai aos poucos criando um painel completo de vida e obra. Da infância no Estácio, no Rio, ao encontro com as grandes estrelas da MPB dos anos 1970 e até os períodos em que a miopia do mercado e das gravadoras o deixaram sem tanto espaço, cada peça vai se encaixando.
Nas imagens de arquivo, os companheiros de viagem de Melodia formam uma galeria de gigantes. Desde o início, com uma turma com os poetas Torquato Neto e Waly Salomão, o onipresente Caetano Veloso e aquela que seria fundamental em sua carreira, Gal Costa.
A partir daí, a lista de "convidados’ do documentário pode ser considerada um "de A a Z" da melhor MPB: Elza Soares, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio, Zezé Motta... Imagens que são fruto de um garimpo exaustivo em acervos de emissoras de rádio e TV e de cinematecas.
Totalmente focado na figura e no discurso de Luiz Melodia, o documentário se sustenta apenas em música. Muito boa.