Veio como um baque surdo para todo mundo. A pesquisa Retratos da Leitura, à beira do final do ano, sacramentou algo que já era sentido por quem trabalha com livros —o Brasil tem cada vez menos gente que lê.
Foi uma queda de quase 7 milhões de pessoas em cinco anos entre as que responderam ter lido algum livro nos últimos três meses. Como disse na ocasião José Castilho Marques Neto, referência nacional em política de leitura, é uma diminuição em ritmo hemorrágico, que assusta à primeira vista. Mas não foi algo que aconteceu de um dia para o outro.
Representa, na verdade, o acumulado de reveses que incluem a fissura cada vez maior dos brasileiros por telas de celulares, a derrocada de grandes livrarias e governos que, na visão do setor, transitaram entre o desmonte e a paralisia de políticas de fomento à leitura desde o governo de Michel Temer, do MDB.
Em setembro, veio à tona por esta Folha a informação de que os editais de compras de obras didáticas e paradidáticas pelo governo Lula, do PT, que se elegeu prometendo "trocar armas por livros", estavam anos atrasados e prejudicavam não só estudantes como as contas das editoras.
Por outro lado, foi este governo também que deu o relevante passo, na Bienal do Livro de São Paulo, de assinar o decreto que regulamenta a lei do Plano Nacional do Livro e da Leitura, estagnado havia seis anos. Os avanços começam, ao menos, a engatinhar.
É relevante sublinhar que a somatória de crises não é nova —recente é a mobilização em uníssono do mercado editorial para avançar medidas políticas que enxergam como soluções, caso deste plano federal com potencial de impulsionar ações para formação de leitores.
Outra defesa que tomou a linha de frente esse ano foi a da Lei Cortez, que avançou no Senado propondo limitar descontos a novos livros no primeiro ano após seu lançamento —o setor diz que a medida vai sanitizar todo o ambiente de negócios ao barrar práticas que veem como predatórias de conglomerados como a Amazon.
Se as cifras do mercado no primeiro semestre se anunciavam pouco promissoras, indicando queda nas compras, o final do ano se segurou bem e o resultado deve se aproximar dos números do ano passado.
Ironicamente, a salvação da lavoura veio em parte das grandes feiras literárias, que viram suas vendas crescerem atraindo leitores com promoções. É o caso da Feira da Universidade de São Paulo, a mais tradicional entre as universitárias com descontos massivos, e a própria Bienal do Livro, que tem ofertas mais módicas e teve a maior edição de toda a década.
Isso decorre de mudanças que se notam nos hábitos de leitura. Se hoje é mais difícil topar com livrarias pela rua do que antes da pandemia, grandes eventos viraram uma oportunidade rara de parcela da população ter contato com o livro, numa reacomodação que a indústria do livro estuda com atenção hoje.
Como incutir hábitos de leitura e fomentar ambientes como livrarias diante de um público cada vez mais enfiado no celular? Para isso, é essencial ver que boa parte do mundo, como o conhecíamos, ficou para trás.
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O ano também foi marcado pelas despedidas de alguns dos nomes que definiram o último século na literatura. O Brasil perdeu um de seus maiores quadrinistas e ilustradores, Ziraldo; um de seus mestres do conto, Dalton Trevisan; um de seus mais talentosos letristas, Antonio Cicero; e um de seus poetas mais admirados, Armando Freitas Filho.
Mas vale fazer um aparte: no mesmo ano, uma das maiores autoras brasileiras recebeu em vida suas maiores celebrações —a mineira Adélia Prado, hoje com 89 anos, foi agraciada com o Camões e o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
Já os Estados Unidos deram adeus a Paul Auster, que reinventou a literatura do país; a Argentina velou sua maior crítica literária, Beatriz Sarlo; o Chile enterrou seu amado Antonio Skármeta; e a Albânia se despediu de seu principal autor, Ismail Kadaré.
Também perdemos duas prêmios Nobel —ainda que uma delas, a caribenha Maryse Condé, tenha recebido o prêmio alternativo em votação popular, quando o Nobel estava mergulhado em uma crise de imagem.
A outra vencedora, a canadense Alice Munro, viu sua própria imagem passar por crise após a morte, quando foi revelado que ela sabia que seu marido, Gerald Fremlin, havia abusado de sua filha e decidiu continuar ao lado dele —num dos maiores escândalos do mundo literário neste ano.
Já o Nobel de Literatura de 2024 indicou que a geopolítica do prêmio está em transformação ao premiar Han Kang, autora sul-coreana que destoa do eurocentrismo que costuma dar a letra da Academia Sueca.
É sintoma, além do talento da autora, do interesse mais intenso por literatura produzida na Ásia, por exemplo pelos "livros de cura" relaxantes que viraram febre no Brasil nos últimos anos. Também continuaram em alta tendências da literatura pop como a "romantasia" que cativa tantos jovens e a autoficção que segue prestigiando autores com prêmios.
Um dos expoentes mundiais desse estilo, o francês Édouard Louis, foi a maior estrela de uma Flip que abraçou um caráter mais popular em outubro, procurando refletir mais diretamente o que se encontra nas livrarias. Assim, apostou em brasileiros como Luiz Antonio Simas e Carla Madeira, além de estrelas premiadas como Mohamed Mbougar Sarr.
Aliás, o ano foi pródigo para a visita de grandes escritores ao Brasil, que recebeu ainda Camila Sosa Villada para eventos bafônicos na época da Feira do Livro, em São Paulo, e Bernardine Evaristo para uma Flup, no Rio de Janeiro, que privilegiou o protagonismo de mulheres negras com pés fincados em debates políticos.
Quem também foi proeminente em eventos —e conflitos— literários esse ano foi Felipe Neto, influenciador que quebrou recordes de pré-venda na Companhia das Letras com seu autobiográfico "Como Enfrentar o Ódio" e abriu um clube de leitura que cativou dezenas de milhares de pessoas, esgotando estoques dos livros selecionados.
É a prova do tamanho da mobilização de que é capaz um youtuber a quem muitos torcem violentamente o nariz, inclusive por ter sido contemplado com uma posição prestigiada na Flip. Mas quem está tenso com o declínio do número de leitores no Brasil não tem como ficar escolhendo a dedo seus aliados.