Muita coisa já foi dita sobre a Segunda Guerra Mundial. Mas talvez poucas concentrem tanta força em tão poucas palavras quanto o trecho abaixo, escrito em 1939 pelo polonês Michal Skibinski, quando ele tinha oito anos de idade.
"07/09/1939 - Os alemães ocuparam a cidade.
08/09/1939 - Dei comida para as galinhas e para os pintinhos."
Skibinski morava em Varsóvia, na Polônia. Quando as férias começaram, o colégio pediu que o menino fizesse um diário durante o recesso escolar e escrevesse algo todos os dias. Mas o garoto não apenas falou sobre passeios, brincadeiras e a vida em família —com datas exatas e frases ao mesmo tempo curtas e poéticas, ele acabou testemunhando e registrando o início da Segunda Guerra e a invasão alemã na Polônia em 1939. Tudo a partir do olhar de uma criança.
Transformado agora em livro, o diário acabou de chegar ao Brasil pelas mãos da editora Baião. "Hoje Eu Vi um Pica-pau" mistura reproduções das anotações reais, que foram digitalizadas e mostram a letra original do garoto, com ilustrações feitas pela também polonesa Ala Bankroft.
Não que registros de conflitos a partir de diários de crianças sejam novidade. O mais famoso é o best-seller "O Diário de Anne Frank", a menina de 13 anos que narrou o horror nazista em Amsterdã. Mas há outros, como o de Encarnació Martorell i Gil, que escreveu sobre a Guerra Civil Espanhola e a ascensão franquista em "Com Olhos de Menina". Só que o caso de Skibinski é diferente.
Ao contrário dos outros relatos, "Hoje Eu Vi um Pica-pau" não é uma narrativa extensa, confessional nem reflexiva. Como o polonês era mais jovem do que as pré-adolescentes Frank e Martorell i Gil, seus apontamentos quase se aproximam da poesia e do verso, preservando um frescor delicado e inesperado —mesmo que as linhas estejam encharcadas pelo sangue da guerra.
Se tudo começa com passeios até o riacho e idas à floresta, a ponto de Skibinski escrever coisas como "achei uma lagarta grande e levei ela para o nosso quintal", pouco a pouco os registros vão ficando mais sombrios. "Um avião circulou sobre a cidade de Anin", "Fiquei me escondendo dos aviões", "Lançaram uma bomba perto da gente".
O agravamento do conflito atinge também a parte visual. As pinturas de Bankroft vão ficando cada vez mais escuras, mais soturnas, mais graves, cheias de fumaça. Mas sem jamais perder o equilíbrio com o olhar infantil.
Não desaparecem da narrativa delicadezas como os encontros com tios e avós, vespas presas em copos, jardins regados com mangueiras e o último encontro com o pai. No dia 29 de agosto de 1939, aparece escrito: "Papai veio me visitar". Aviador polonês, o homem morreria pouco depois, em 9 de setembro, um dia após o menino dar comida para as galinhas. O acidente aéreo que matou o pai, porém, não aparece nas anotações.
Porque está aí a potência do livro. Escrito por uma criança, o diário não apresenta fatos com rigor jornalístico nem aborda acontecimentos a partir de grandes feitos e decisões que mudaram o mundo. Só que a história maiúscula está lá. Permanece preservada de outras formas. A invasão nazista na Polônia, o Gueto de Varsóvia, a perseguição aos judeus, tudo isso se esconde entre lagartas, vespas e brincadeiras.
A guerra ganha outras perspectivas no livro. É como se olhássemos esse período com a estatura de um menino de oito anos. Com outro ponto de vista. Outra linguagem.
Ou também como um lembrete para os dias atuais. Quantos Skibinskis não existem neste momento na Ucrânia, na Palestina, no Líbano, no Sudão? O que essas crianças estão vendo? O que escrevem? Quantas estão morrendo neste exato segundo? E por quê?