Literatura de protesto é a única opção, diz escritora perseguida na Nicarágua

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A ditadura nicaraguense acirrou-se nos últimos anos, em especial depois dos massivos processos estudantis de 2018, que causaram 400 mortes e centenas de prisões.

Foi naquele momento que o regime de Daniel Ortega se incrementou. Na época, ele enviou para atrás das grades diversos dos seus companheiros na Revolução Sandinista, que deu fim às quatro décadas de poder dos Somoza em 1979.

Entre eles estava a escritora Gioconda Belli, 76, que tem seu livro "A Mulher Habitada", de 1988, lançado agora no Brasil.

O sandinismo mudou a Nicarágua quando foi implementado. O movimento havia conseguido reunir distintos setores da sociedade —incluindo partidos de diversos espectros políticos e até parte da Igreja— e promoveu de forma bem-sucedida políticas de redistribuição de riquezas e de funções que antes só eram usufruídas por aqueles vinculados à família Somoza.

As coisas começaram a mudar em 2007, quando o atual ditador, Daniel Ortega, voltou ao poder para cumprir seu segundo mandato como presidente —ele já havia liderado a junta diretiva de 1985 a 1990.

"Foi nessa época que se deu a pior transformação de Ortega. Ele passou a ficar paranoico com relação a seus colegas de revolução. Um a um, foram sendo afastados, enviados para o exílio, quando não presos e condenados sem nem sequer um julgamento justo", afirma Belli.

A única grande aliada de Ortega passou a ser uma figura até então discreta no sandinismo, Rosario Murillo, 73. Ela tinha sido secretária de um dos irmãos Chamorro, família historicamente rival dos Ortega. E se transformou em uma peça central do regime.

"Hoje, na prática, há dois co-presidentes", diz Belli, fazendo referência a Murillo e a Ortega. "E arrisco a dizer que ela manda mais, porque se expõe, dá as caras, emite as ordens".

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A escritora vive em Madri, onde se instalou há três anos sem qualquer aviso ou preparação prévia. "As coisas já estavam complicadas, Ortega prendeu todos os seus colegas sandinistas, e eu era muito ativa no grupo. Saí do país em uma viagem de férias, para ver minhas filhas, que vivem nos Estados Unidos. Ortega confiscou minha casa e minha nacionalidade. Amigos tentaram reaver minhas coisas, mas a casa está trancada e vai se transformar em edifício do governo."

O que mais lhe doeu, conta, foi abandonar os seus cães. Um deles morreu no ano passado, de velhice e, segundo Belli, tristeza.

O outro foi adotado por amigos. "Ele está bem. Quem nao está sou eu, por sua ausência e porque sei que nunca voltarei a vê-lo", afirma.

A autora afirma que, visto hoje, seu romance "A Mulher Habitada" antecipa em certa medida o que aconteceria com a Nicarágua pós-sandinismo.

Ele conta a história de Lavínia, uma jovem que regressa da Europa para uma América Latina na qual tem dificuldade de viver como uma mulher independente. Até que se apaixona por Felipe, com quem conhece as lutas populares pré-revolucionárias, e se encanta com a empreitada sandinista.

No encontro entre as culturas europeia e sul-americana, ainda há a descoberta do universo dos indígenas locais.

A reportagem pergunta: trata-se de um livro cheio de esperança, não? "Em certo sentido, sim", responde Belli. "Naquela época, o que mais tínhamos era esperança de transformação do nosso país."

Mas, acrescenta, hoje ela vê o livro "com os olhos duros da realidade". "Antes, eu tinha um olhar de esperança para tudo. Agora não tenho mais. Trata-se mais de uma contagem regressiva, esperando que exista um fim em tudo isso."

"Imaginava que poderia ser uma escritora que também narraria o que ocorre em seu país. Agora, sinto que tenho de falar disso antes de qualquer coisa, como se fizesse uma espécie de manifesto. E já se passaram meus anos de revolucionária", prossegue. "Então, o que faço hoje é, sim, uma literatura de protesto."

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