João do Rio, mestre da andança, ensinou que flanar é tomar a posse da cidade

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A homenagem da Flip a João do Rio inspira a pensar nas andanças do escritor-flâneur pelo Rio de Janeiro do início do século 20.

Suas crônicas são um testemunho das contradições do progresso, da cidade e de seu tempo. Seu método de tomar posse da cidade é justamente o caminhar, a síntese possível entre a velocidade e a fruição, entre a elitização e o uso do espaço público, entre o tempo útil e o tempo inútil.

O flanar está ligado a um período, um lugar e uma pessoa. O período é meados do século 19, o lugar é Paris, e a pessoa é o poeta Charles Baudelaire. É ele o artista que registra o espanto diante dos grandes trabalhos do barão Haussmann, que rasgam o tecido medieval e abrem espaço para os novos bulevares.

"Moderno é quem abraça aquilo que o ameaça", a frase de Marshall Berman, em "Tudo que é Sólido Desmancha no Ar" era sobre Baudelaire, mas certamente se aplicaria a João do Rio, 50 anos depois.

No Brasil do início do século 20, a jovem República escolhe sua capital para botar o pé na modernidade. A partir de 1903, o prefeito Pereira Passos coloca o plano em ação.

A avenida Central, futura Rio Branco, é o símbolo dessas reformas, cortando o centro da cidade com gigantescos 33 metros de largura e as generosas calçadas de sete metros que acomodariam cafés, sedes de empresas e os hotéis mais elegantes do Brasil sob inédita iluminação elétrica.

Para construir aquilo, porém, mais de mil famílias foram removidas. Junto com milhares de outras, irão para o subúrbio ou para as primeiras favelas da cidade, escancarando a contradição entre o progresso urbano e o aumento da segregação social.

É esse o cenário do cronista-flâneur João do Rio, ele mesmo uma contradição ambulante, filho de homem branco e mulher negra, homossexual, dândi e espalhafatoso que se move através de dois mundos, o dos poderosos que se vestem para ir "à avenida" e o dos excluídos.

O progresso o fascina. "Uma nova estética surge, a estética do milagre animador", mas João do Rio não é insensível às ameaças à sociabilidade cotidiana —"estou cheio de pressa" ou "aqui é o desespero do barulho".

O flâneur cosmopolita abraça as novidades, mas, diante da velocidade espantosa dos automóveis, se vale da vagareza cotidiana do andar para se deslocar, vaguear, errar, vagabundear. "Flanar é a distinção de perambular, com inteligência."

Cabe perguntar se esse andar é apenas um método para buscar assuntos para suas crônicas ou um hábito de fruição urbana. Para João do Rio, parece ser os dois. Andar para se inspirar, sim, mas também porque é impossível um curioso desse não experimentar a cidade sensorialmente, "ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha ali à esquina".

Não dá para escrever sobre a vida num presídio, como ele fez, sem ter visitado e conversado com os presos. Ou para descrever o cheiro de uma casa de ópio, tomada por chineses deitados, com os olhos saindo pelas órbitas: "câimbras no estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar". Não dá para falar sobre estivadores sem ter entrado com eles num barco hediondo.

Ao escrever prolificamente sobre tanta coisa e tanta gente, João do Rio acaba também ajudando a reformar a própria escrita, aprofundando a leveza da crônica ou "fazendo a crítica moderna do moderno", como sugere a antropóloga Julia O'Donnell. Aproximar a língua escrita, ainda com laivos parnasianos, da língua das ruas é em si abraçar a modernidade.

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É na rua que a maior parte dessas contradições se manifestam. Nos novos espaços, a vitalidade urbana mistura, ainda que parcial e temporariamente, trabalhadores, mendigos, vendedores, tatuadores, prostitutas, estivadores, apostadores, banqueiros, herdeiros e jornalistas.

É um momento importante na formação da identidade urbana brasileira, o momento em que pessoas de origem, nível social e até língua diferente passam a ter que adotar uma atitude civilizada para conviver no espaço público ou num bonde —atitude essa que o sociólogo Richard Sennett chama de urbanidade. Essa, aliás, é a matéria de muitos dos conflitos que surgem nas crônicas: "Você sabe com quem está falando?".

É de beleza simples a frase que João do Rio usou para iniciar uma palestra, depois tornada parte do livro "A Alma Encantadora das Ruas": "Eu amo a rua".

Amar a rua exprime a síntese entre as tantas contradições ligadas ao crescimento urbano e à aspiração republicana da modernidade. A melhor resposta às mudanças é, ao modo de Baudelaire, mergulhar na multidão. Ninguém melhor que o escritor-andarilho para dissecar uma cidade e ajudá-la a se conhecer enquanto cresce.

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