Se Inezita Barroso não tivesse morrido em 2015, completaria cem anos nesta terça-feira (4). Considerada uma das grandes artistas da música popular brasileira, Inezita é reconhecida tanto por sua defesa apaixonada da tradição caipira quanto por seu papel pioneiro como mulher no cenário musical.
Nascida em São Paulo e criada na Barra Funda e em Perdizes, ela se orgulhava de viver perto da casa de Mário de Andrade, seu principal mentor teórico e estético. Passava as férias nas fazendas da família em cidades do interior, como Presidente Prudente, Itapetininga, Itapira e Campinas, onde encontrou sua verdadeira inspiração.
Embora tenha recebido uma formação urbana completa, estudando canto, violão, viola e piano em conservatórios, a resistência familiar a fez se formar em biblioteconomia na Universidade de São Paulo. No entanto, seu amor pela música prevaleceu e, em 1951, ela iniciou a carreira como cantora.
Ao longo de sua trajetória, Inezita gravou uma vasta gama de gêneros, incluindo maracatus, cocos, modas de viola, canções praieiras, lundus, sambas, valsinhas, toadas, pagodes caipiras e xotes. Ela se tornou íntima do repertório de compositores rurais da década de 1930, como João Pacífico, Angelino de Oliveira, Raul Torres e Cornélio Pires, além de gravar canções de artistas contemporâneos seus, como Teddy Vieira, Mário Zan, Tião Carreiro e Hekel Tavares.
Seu repertório ultrapassava as fronteiras da música caipira, incluindo composições de Villa-Lobos, Noel Rosa, Guerra-Peixe, Capiba, Dorival Caymmi, Paulo Vanzolini e Lupicínio Rodrigues. Entre seus clássicos inesquecíveis estão "Ronda", de 1953, "Marvada Pinga", de 1955, e "Lampião de Gás", de 1958.
Por sua contribuição à música, ela foi chamada de "diva da tradição". Inezita tornou-se uma defensora incansável da brasilidade folclorizada. Em 1955, lançou dois LPs com títulos nacionalistas —"Lá Vem o Brasil" e "Coisas do Brasil". Em 1958, lançou o LP "Eu me Agarro na Viola" e, em 1960, "Vamos Falar de Brasil", que também era o nome do programa que apresentou na TV Record por sete anos. Em 1962, lançou "Clássicos da Música Caipira".
Mas contra quem lutava Inezita? Desde 1952, o Brasil vinha sendo tomado pelo sucesso de gêneros estrangeiros, especialmente mexicanos e paraguaios. Guarânias como "Índia", cantada por Cascantinha & Inhana, arrebanharam multidões. Inezita se posicionou contra os importadores sertanejos que, para ela, estavam desvirtuando a tradição do campo brasileiro.
Ela criticou muito duplas como Milionário & José Rico, afirmando que as rancheiras que eles cantavam eram "bregas" e não refletiam os valores do homem do interior. Quando, a partir dos anos 1980, além do rock, o country e o brega adentraram a música sertaneja, ela se tornou a artista de uma tecla só, sempre demarcando o quanto a música caipira estava sitiada ante o crescente avanço "inimigo".
Apesar do tom vitimista, Inezita não estava sozinha. Desde 1980, e por quase 35 anos, ela apresentou o programa "Viola, Minha Viola" nas manhãs dominicais da TV Cultura. Com público restrito, mas fiel, seu programa era o bastião da "boa música", resistente aos modismos e às importações. "Os sertanejos quebraram aquela unidade caipira. Então dali para cá começaram a aparecer as duplas ditas modernas, né? Criou‑se, neste momento, não uma inimizade, mas uma prevenção contra esse tipo de música", disse Inezita.
Para se "prevenir" contra a modernização "estrangeira", ela se tornou, além de apresentadora, professora de folclore brasileiro. Assumiu a cadeira de folclore na Universidade de Mogi das Cruzes e no curso de turismo da Faculdade da Capital, instituição de ensino superior privada de São Paulo.
A TV estatal tornou-se o último bastião dos caipiras. Com Rolando Boldrin no "Sr. Brasil" e Inezita Barroso no "Viola, Minha Viola", a TV Cultura, criada em 1969 pelo regime ditatorial, era uma das poucas mídias possíveis para os caipiras. "A gente não admite concessões. Não estou procurando dinheiro. Se quisesse, abriria uma butique. Nunca tive essa ambição. Talvez eu seja bem caipira mesmo, pois os verdadeiros caipiras não têm essa ambição", defendia-se Inezita.
Em entrevista no ano 2000 ao jornalista Pedro Alexandre Sanches, a artista disse que achava o sertanejo universitário uma "tapeação". Sororidade tampouco era seu forte. Sobre Paula Fernandes, cantora de timbre grave como ela, Inezita foi taxativa: "Já ouvi. Eu acho um pouquinho fraco". Nada que era moderno a satisfazia.
Os poucos sertanejos das novas gerações que foram permitidos em seu programa tiveram que atender às suas vontades, caso de César Menotti & Fabiano e Daniel. No domingo de Páscoa de 2013, os irmãos Menotti cantaram canções tradicionais ao som da viola, renegando seu repertório pop. Daniel beneficiou-se da mediação de Inezita e hoje apresenta um programa nos mesmos moldes na Globo, o dominical "Viver Sertanejo", mas louvando aqueles que ela detestava.
Junto com Rolando Boldrin, Inezita tornou-se uma das principais marcas da estética caipira. Ao longo da vida, ganhou prêmios importantes, como Roquette-Pinto, Sharp, prêmio Saci de Cinema, medalha Ipiranga e o título de Comendadora da Música de Raiz, além de cidadã emérita de várias cidades interioranas brasileiras. Em 2011, ela foi agraciada com uma viola da marca Rozini, que batizou um instrumento com seu nome para ser vendida do mercado de violas, diminuto, mas perene.
Em vida, Inezita teve quatro biografias lançadas. A primeira, intitulada "A Menina Inezita Barroso", foi escrita por Assis Ângelo e lançada em 2011. A segunda, da Série Aplauso da Imprensa Oficial, chama-se "Com a Espada e a Viola na Mão", de Valdemar Jorge, publicada em 2012. Em 2013, foi lançado o terceiro livro, "Inezita Barroso - A História de uma Brasileira", escrito por Arley Pereira. Por fim, em 2014, foi publicado o quarto título, "Inezita Barroso - Rainha da Música Caipira", de Carlos Eduardo Oliveira.
Inezita também era vendável. Apenas seu público se tornou menor diante do sucesso sertanejo, que a pôs como secundária na disputa pelo capital campestre. Mas arte e dinheiro não são sinônimos, e Inezita soube fazer de seu discurso um verdadeiro cavalo de batalha em nome da tradição até o fim da vida.