Indicado de Lula para fiscalizar mineração tem filho e mulher em mineradoras

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O indicado de Lula para compor a diretoria da ANM (Agência Nacional de Mineração) terá que lidar com processos de mineradoras que empregam seu filho e sua esposa caso o Senado o aprove em sabatina. Ambos são consultores especializados em relações com órgãos públicos, inclusive reguladores, o que pode configurar conflito de interesse.

Em documento, José Fernando de Mendonça Gomes disse ao Senado não possuir parentes que exercem ou exerceram atividades vinculadas à sua atividade profissional. Mas ele é pai de Caio Brilhante Gomes, consultor jurídico da Aura Minerals, mineradora listada no Canadá que extrai ouro em Mato Grosso e Tocantins e que tem projetos no Pará e no Rio Grande do Norte.

A empresa é uma das maiores produtoras de ouro do país e, no ano passado, faturou US$ 600 milhões (R$ 3,5 bilhões). Também foi responsável por distribuir R$ 20 milhões em royalties em 2024.

Caio é consultor jurídico da Aura para legislações ambientais e minerárias desde novembro de 2023 –antes disso, era dono de um escritório de advocacia e presidente da Comissão de Assuntos Minerários da OAB no Pará. Em sua conta no LinkedIn, Caio compartilha com frequência publicações da empresa.

Na mineradora, ele elabora documentos jurídicos, acompanha ações administrativas e judiciais e presta assessoria jurídica para as operações da empresa no Brasil. Também é responsável por entrar em contato com agências públicas –inclusive a ANM, para a qual seu pai foi indicado.

Segundo o portal da ANM, a Aura Minerals tem 117 processos ativos na agência. O órgão é responsável por conceder licenças de pesquisa e extração mineral e fiscalizar barragens de rejeitos e distribuição de royalties.

A agência tem um diretor-geral e quatro diretores, com mandatos de quatro anos e recondução permitida. Gomes foi indicado um dos quatro cargos de diretoria, hoje vago.

A depender da tramitação dos processos da Aura, eles podem chegar à diretoria colegiada e, inclusive, serem relatados por Gomes. Em janeiro do ano passado, por exemplo, um processo de concessão de lavra da empresa em Mato Grosso foi entregue a um dos diretores para relatoria.

Além de julgarem processos, os diretores da agência são responsáveis por editar resoluções ou regulamentos que impactam processos administrativos e aprovar acordos entre a agência e as mineradoras. Eles também têm influência para orientar superintendentes e coordenadores da agência e indicar profissionais para cargos comissionados do órgão.

Quem conhece o cotidiano da ANM aponta que, ainda que Gomes possa não julgar os casos das mineradoras que empregam seu filho e sua mulher, eventual favorecimento às empresas poderia acontecer por meio dessas outras formas de atuação.

A Folha tentou contato com Gomes via seu filho, sua mulher e a empresa que ele preside hoje, a Companhia de Saneamento do Pará. Em nenhum dos casos houve retorno.

Caio delegou sua resposta à Aura Minerals, que disse não ter relação com a indicação de diretores para a ANM. "A companhia reforça que seu compromisso com condutas íntegras e com a lisura de todos os processos que envolvam suas atividades, observando e cumprindo integralmente as leis anticorrupção e as melhores práticas de compliance nos países onde atua", afirmou em nota.

A mulher de Gomes também presta serviços para mineradoras. Poliana Bentes tem uma empresa de consultoria, por meio da qual faz relações institucionais e governamentais para empresas.

Entre seus principais clientes estão a mineradora Bemisa, que tem projetos de vários minerais no Brasil, inclusive no Pará, onde Gomes foi secretário de desenvolvimento econômico e mineração entre 2021 e 2023, durante o governo de Helder Barbalho (MDB).

Segundo o portal da ANM, a Bemisa tem 333 processos ativos na agência –a empresa diz que, na verdade, são 154 e que o site da ANM está desatualizado.

Em nota, a Bemisa afirmou que todas as suas contratações de prestadores de serviços "seguem processos rigorosos de governança e compliance, garantindo que os profissionais e empresas envolvidas atendam aos mais altos padrões de qualificação e de integridade".

"No caso específico da consultoria de Poliana Bentes, a contratação foi realizada há alguns anos devido à experiência teórica e profissional em projetos na região amazônica, um fator essencial para a condução dos trabalhos dentro das particularidades desse território."

Mas Poliana ainda presta serviços para a mineradora. Há seis meses, inclusive, visitou a sede da empresa em Belo Horizonte –o registro foi publicado em sua conta no Linkedin. "Orgulho em fazer parte dessa jornada!", escreveu na publicação.

Ela também presta serviços para a mineradora Ligga, que opera no Pará e tem dez processos ativos na ANM, segundo o portal da agência. Desses, dois passaram pela diretoria do órgão em 2023 e seguem ativos –com possibilidade de retornarem para o colegiado. A Folha não conseguiu contato com a empresa.

Poliana disse que sua consultoria atua apenas no Pará e não interage com a ANM. "Nenhum desses processos, sob qualquer tempo, passam pelo trabalho desenvolvido pela consultoria, uma vez que nossos serviços são prestados única e exclusivamente no estado do Pará", diz em nota.

A esposa de Gomes também tem contato próximo com o Simineral, sindicato que representa 13 mineradoras que operam no Pará –entre elas Vale, Hydro e MRN— e onde trabalhou de 2021 a 2023 como diretora-executiva da entidade. Tanto Simineral quanto Poliana disseram não ter mais vínculo.

Gomes presidiu o Simineral de 2011 a 2021. Ele também foi gerente regional de relações governamentais da Vale no Pará e Maranhão de 2006 a 2021. A mineradora tem mais de mil processos na agência e, nos últimos dois anos, ao menos 28 processos da companhia foram parar na diretoria, sendo dois relatados pelo diretor que Gomes pode substituir.

Procurada, a Vale disse que a indicação de integrantes da ANM é uma prerrogativa do Executivo. "Cabe ressaltar ainda que o indicado em questão não trabalha na empresa há cerca de quatro anos, tendo desde então outras experiências profissionais."

O guia para prevenção ao conflito de interesses da ANM considera conflito "praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes até o terceiro grau".

José Augusto Medeiros, advogado especializado em regulação econômica e legislação anticorrupção, aponta que a norma também tem caráter preventivo e, nesse caso, o conflito de interesse pode existir sem que haja favorecimento às empresas.

"A possibilidade de comprometimento do interesse público ou de influência imprópria sobre o desempenho da função pública do agente é o parâmetro para a caracterização de conflito de interesses, ainda que esse comprometimento não seja de natureza material ou patrimonial", afirma. "Colocar um diretor com o potencial conflito de interesse na agência é contraditório com a política e mecanismo de prevenção, que servem para que não se assuma o risco de se cometer o conflito de interesse", acrescenta.

Ele aponta que, como a indicação veio de Lula o conflito de interesse já deveria ter sido objeto de avaliação prévia pela CGU (Controladoria-Geral da União).

Os vínculos também chamaram a atenção de servidores da agência, que pedem atenção aos senadores. "É fundamental que o Senado Federal, no exercício de seu papel constitucional, conduza uma sabatina rigorosa, trazendo à discussão eventuais conflitos de interesse que possam comprometer a isenção necessária ao exercício da função", disse em nota o Sinagências, sindicato dos servidores das agências reguladoras federais.

A sabatina no Senado de apreciação do indicado ainda não tem data marcada.

Na indicação enviada a Lula, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse que a nomeação de Gomes seguia a legislação. O MME e a Casa Civil, responsáveis pela indicação, não responderam aos questionamentos da Folha.

Maurício Angelo, diretor do Observatório da Mineração –uma das entidades mais atentas aos movimentos políticos do setor minerário no Brasil– diz que a agência, historicamente, sofre uma série de pressões e influência do setor mineral. "É muito comum que diretor, superintendente e gerente regionais tenham migrações ou um passado recente com o setor privado. Trata-se de uma porta giratória, carregando informações sensíveis de um setor para o outro", afirma. "Isso compromete a função da ANM de fiscalizar e regular."

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