O título deste monólogo já é uma declaração de princípios: "Não Me Entrego, Não!". É Othon Bastos, prestes a completar 92 anos, em maio, quem afirma, com o mesmo entusiasmo que marcou para sempre o seu Corisco, há 61 anos, no filme de Glauber Rocha. E a primeira coisa que qualquer um admira no espetáculo que agora chega a São Paulo é a energia do ator, que toma conta da cena por cerca de hora e meia para resumir seus 74 anos de carreira.
Dessa carreira é inseparável a formação na Bahia culturalmente explosiva dos anos 1950. Ali estudou com Paschoal Carlos Magno, antes de ir para Londres. Na volta, foi contratado pela TV Tupi de São Paulo.
Fez seus primeiros papéis em cinema, mas o que era inevitável para um jovem ator era descobrir as companhias paulistas de teatro do começo dos anos 1960. Assim, ele participou do Arena de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, além do Oficina, com Zé Celso, dois marcos do moderno teatro brasileiro.
Essa gênese é importante porque é no tumulto criativo das décadas de 1950 e 1960 que nasce o cinema novo, e é a este que Othon deve não só o nome do seu monólogo como talvez a melhor história da peça: a da noite em que Glauber Rocha, sem saber o número da casa onde o ator morava, saiu gritando seu nome, casa por casa —e Othon o imita—, até que encontrou a casa: ele seria o Corisco de seu "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
Outra história com Glauber. Durante a viagem, o ator tentou convencer o diretor a abdicar de uma cena em que teria uma luta corporal com Antônio das Mortes, porque Antônio era ninguém menos que Maurício do Valle, ator com o dobro de tamanho e o triplo de peso de Othon. Não seria uma luta, seria um massacre, argumentou o ator, e pelo jeito convenceu o autor do filme: Corisco morrerá por tiro de espingarda mesmo, numa cena antológica.
Pouco tempo depois, Bastos não foi escolhido para fazer Porfírio Diaz, o ditador de "Terra em Transe". Glauber preferiu Paulo Autran, que tinha a idade certa para o papel —era dez anos mais velho que Othon.
Mas parece que o ator ficou um tanto frustrado por só ter feito um outro papel (menor) com o diretor, em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". No caso, é provável que Glauber tivesse razão. Além da questão da idade, Othon assumir outro papel tão forte quanto o de Corisco diluiria a mitologia em torno do personagem e também do ator.
Sua filmografia seria, de todo modo, ilustre, e ele cita entre outros o Paulo Honório de "São Bernardo", de Leon Hiszman. Os episódios narrados no espetáculo —que nem sempre são os mesmos— carregam também a experiência em TV —mais de 80 aparições em novelas e tudo mais—, mas é o teatro, de longe, o centro de tudo.
Dele vem o humor que anima o espetáculo tanto quanto a energia do ator. Dele vem também a história de amor, pois de lá vem o encontro com a atriz Martha Overback, com quem se casou em 1960, o que não é espantoso, mas com quem permanece casado até hoje —65 anos de casamento não é tão habitual.
É primeiro pelas histórias pessoais que vale esse espetáculo. Mas, na mesma medida, pelos encontros, pelos feitos, pelos gestos, pela dicção tão especial com que marca cada cena, pelos afetos, pela sobriedade expressiva.
Uma hora e quarenta, em um ato só, com Othon Bastos é um passeio precioso não apenas pela vida de um personagem central da arte cênica brasileira no século 20, pela força que manifesta, de quem de fato não pretende se entregar, como pelo que ensina sobre a arte e a cultura moderna brasileira.