O governo espanhol anunciou planos para proibir experimentos prejudiciais em grandes primatas. A decisão é parte de uma iniciativa mais ampla para dar a eles direitos mais próximos dos desfrutados pelos humanos.
Esses planos são inovadores em comparação com a maior parte do resto do mundo, no entanto a medida tem dois lados. Conceder direitos humanos devido à semelhança conosco cria um novo critério: outros animais só podem ser livres de dor e sofrimento se os pesquisadores puderem provar que são semelhantes aos humanos.
Os grandes primatas são o subconjunto de primatas não humanos que inclui orangotangos, gorilas, bonobos e chimpanzés. Há mais de 16 anos, a Espanha tentou pela primeira vez conceder a personalidade a eles. A resolução interpartidária foi discutida, mas nunca foi transformada em lei.
Atualmente, experimentos desnecessários em grandes primatas foram proibidos em 29 países, entre os quais, o Reino Unido e a Nova Zelândia. Isso inclui a vivissecção (cirurgia em um corpo vivo) ou tortura, dependendo da sua atitude em relação aos direitos morais dos grandes primatas.
Pode parecer um progresso. O problema é que "necessário" é definido de diferentes maneiras. Geralmente se concentra em situações de crise, como pandemias e epidemias, e em pesquisas relacionadas ao cérebro (principalmente sobre Alzheimer e traumas cerebrais), nas quais muitos cientistas argumentam que a semelhança do cérebro faz deles o único modelo equivalente. Em 1999, a Nova Zelândia propôs a concessão de direitos humanos aos grandes primatas, mas não chegou a fazê-lo, proibindo todas as experiências invasivas.
As Ilhas Baleares seguiram o exemplo, em 2008, e a Áustria é o único país do mundo que proibiu todas as cirurgias em primatas não humanos, grandes e pequenos (também conhecidos como gibões, que incluem saguis e babuínos).
O Great Ape Project, fundado pelos filósofos morais Peter Singer e Paola Cavalieri, faz campanha pelo fim da experimentação em grandes primatas. Em sua página inicial, há lembretes de chimpanzés ainda encarcerados em laboratórios, muitos dos quais passaram a vida inteira submetidos a procedimentos experimentais, como os 26 de Alamogordo, no Novo México. Esses 26 chimpanzés ainda estão presos em um laboratório, apesar de não terem sido usados em pesquisas médicas por mais de duas décadas.
A questão dos direitos humanos dos grandes primatas levanta uma série de dúvidas, especialmente sobre a maneira como os humanos entendem o mundo natural em uma estrutura hierárquica. Os seres humanos estão no topo dessa estrutura e controlam os outros níveis da hierarquia. Isso é conhecido como especismo. Quem decide o que é ético para outras espécies? Nós somos uma espécie e é a nossa percepção que legisla sobre o destino de todos os animais não humanos.
Muitos ativistas dos direitos dos animais se referem à citação do filósofo inglês do século 18 Jeremy Bentham: "A questão não é: ‘eles podem raciocinar? podem falar? E, sim, 'Eles podem sofrer?’". Mas esse não é o principal paradoxo quando se trata da experimentação animal moderna. Em vez disso, é a crença de que quanto mais semelhante aos humanos for um animal não humano, mais útil ele será para as pesquisas que afetam os humanos. Isso também significaria que sua dor e sofrimento são mais semelhantes.
Os grandes macacos são bons o suficiente para servir de modelos para a fisiologia humana, mas não parecem ser bons o suficiente para serem considerados seres sencientes e sofredores. Isso também se aplica a animais com aparência menos humana. Por exemplo, os laboratórios patenteiam linhagens de camundongos com DNA que reflete os cânceres humanos. Isso também os torna mais propensos a sofrer como se fossem humanos. Então, aceitamos que os camundongos são tão parecidos que podem nos servir de modelo em experimentos, mas não tão parecidos que sua dor seja importante?
A segunda questão é que os grandes primatas refletem em seus rostos e em suas ações uma empatia, porém nem sempre isso se aplica aos macacos menores. Em fevereiro de 2024, a organização beneficente Animal Aid publicou os resultados de uma solicitação de informação sobre os experimentos realizados na Universidade de Cambridge com macacos menores. Em 2022, 68 experimentos na instituição envolveram primatas, por exemplo, perfurando o crânio de saguis e injetando uma substância em seus cérebros.
O Reino Unido também abriga um grande centro de criação de beagle, em Cambridgeshire, onde os cães podem ser alimentados à força com produtos químicos tóxicos para estudar os efeitos. Os beagles são frequentemente usados para experimentos com animais devido à sua natureza tranquila.
O macaco menor não é o grande macaco com rosto humano, contudo muitas de suas ações e respostas são semelhantes às humanas. Por exemplo, as fêmeas de gibões dançam para atrair um parceiro.
A ideia de um beagle, um possível animal de estimação da família, ser criado para experimentos destaca o especismo inerente à forma como decidimos com o que ou com quem nos irritamos.
Porque, não se engane, todo animal é um "quem", não um "quê".
Pode parecer ultrajante fazer essa afirmação. Como um camundongo pode ser um "quem", você pode se perguntar. Os camundongos são a espécie mais comum usada em testes clínicos e são criados com doenças e deformidades genéticas especialmente para esse fim. O guincho do camundongo ou o grito do macaco não é sua própria forma de expressão? Algumas experiências com roedores foram projetadas para "recapitular a condição de dor humana". O problema vem da percepção humana do mundo natural e das diferentes espécies como existentes apenas em relação a nós mesmos.
Os ativistas da causa animal costumam dizer que, se os matadouros tivessem paredes de vidro, o mundo seria vegano. Como nos sentiríamos se os laboratórios de vivissecção tivessem paredes de vidro?
Alguns cientistas argumentam que os testes em animais prejudicam os humanos devido aos resultados não confiáveis. Com alternativas disponíveis, desde a modelagem de células tronco até o uso de IA em experimentos e testes, bem como instituições de caridade e centros de pesquisa voltados a estudos sem animais, talvez o ônus deva recair sobre nós mesmos.
Deveríamos nos perguntar: se os seres humanos são tão tecnologicamente competentes e progressistas, por que nossos métodos científicos são tão arcaicos, não confiáveis e antiéticos?
Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original