IA vai substituir terapeutas? Como a psicanálise interage com a tecnologia

há 2 dias 6

Havia os interessados nos mecanismos das arquiteturas neurais (por exemplo, Pitts e McCulloch) e os interessados em como esses mecanismos agrerariam percepção, memória e pensamento (por exemplo, Eric Ericson, Köhler e Kurt Lewin).

Um resumo justo de uma discussão tão importante e extensa, que vai completar quase 80 anos, passa por dois problemas quando falamos da relação da inteligência artificial e a psicanálise:

  • a auto-referência, de onde vem o desafio para a análise da mentira, do ato falho e da negação;
  • a recursividade, ou seja, a capacidade de reinterpretação, assimilação ou tramitação da novidade no sistema de linguagem.

Em Lacan, estes dois pontos são tensionados na teoria da divisão do sujeito, que tem auto-referência contraditória, e na teoria do significante, que vai além de um código fechado de significados.

No primeiro caso, a pesquisa em IA avançou na criação de modelos que simulam a mente e tentam reproduzir aspectos do inconsciente. No segundo, concentra-se em temas como realidade aumentada, imprevisibilidade e infinitude.

Parece, então, que os conceitos de Real, Simbólico e Imaginário mudam dependendo de como os analisamos — seja a partir da ideia de um sujeito paradoxal ou da lógica do significante. E essa é a graça da IA na pesquisa psicanalítica.

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A IA vai substituir os terapeutas?

No livro "Entrevista com a IA" (ed. Zagodoni), o psicanalista Henry Krutzen descreve um experimento real feito por ele usando o Chat-GPT-4 para explorar a consciência, a auto-transformação e o impacto na prática das psicoterapias.

É ideal para quem quer entender, de forma didática e instigante, o que aconteceu na conferência Macy's e o que dizia Lacan no Seminário II sobre "O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise".

Krutzen dialoga com os usos, conceitos e problemas (ou soluções) que vem com a IA —agora disponível para a massa e sendo usada por pessoas que reinventam propósitos nem sempre previstos em laboratório. A tecnologia quando "humanizada" torna-se outra coisa.

Do encontro entre autorreferência (narcisismo) e infinito (saber inconsciente ou pulsão) nasce a "vida social dos objetos".

Então, a questão que permeia o diálogo conduzido por Krutzen, belga radicado no Brasil, é se temos um sistema de saber infinito que poderia superar psicólogos e psicoterapeutas.

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A IA pode fazer com menos custo o que fazemos hoje de modo ainda muito lento e bastante imperfeito?

Se na disputa entre o computador e o xadrez a vantagem é soberana para a máquina, no domínio das talking cure a partida ainda é disputada embaixo de muita chuva, com campo cheio de lama e sem clareza do resultado.

Existem pesquisas que comparam a eficiência de diferentes tipos de terapia, mas acreditar que a IA pode substituir totalmente os terapeutas ainda é como o sonho de Olaf, o boneco de neve de Frozen, que quer viver no verão.

Já contei em uma coluna anterior que uma pesquisa do Medialab da UFRJ mostrou que os apps de saúde mental têm resultados limitados, porque agem mais na ideia de autocuidado e na cultura do "faça-você-mesmo".

A pesquisa mostra que as respostas são mais ou menos as mesmas para todos: técnicas de relaxamento guiado, controle de respiração, rebaixamento da consciência, indução ao sono e mindfulness, automonitoramento, pela escrita de diários e anotações de comportamentos, etc.

Alguns oferecem "terapia guiada" com "avaliações de personalidade" a partir de "teorias baseadas em evidências", como as Terapias Cognitivo Comportamentais. Esses testes fazem sucesso porque a ideia de pertencer a uma comunidade imaginária, capaz de nomear e descrever quem você é, ainda é muito cativante.

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As avaliações iniciais são positivas, mas o nível de vinculação depois de seis meses cai vertiginosamente.

O "faça-você-mesmo" funciona para quase tudo. Satisfazer as demandas do outro é sempre bom. Avaliações positivas e feedbacks são importantes, de vez em quando. Mas um sistema de autossatisfação, que ignora o outro como fonte de conflito, é como oferecer Coca-Cola a quem está com sede: resolve momentaneamente, mas logo a sede volta, ainda mais intensa.

A grande diferença entre uma psicoterapia guiada (online) e uma psicoterapia analógica (interpessoal) é que a primeira reduz a "fricção" presente na segunda. Ou seja, empatia, aceitação, acolhimento e autocompreensão são fundamentais para que a psicoterapia se apresente também como uma situação adversativa, confrontativa e até conflitiva.

A máquina pode simular um suposto saber, gerando efeitos de transferência, demanda ou identificação. Todos já experimentaram a frustração de um dispositivo "animista", como uma impressora que "decide" não funcionar quando mais precisamos.

Mas ela falha naquilo que estruturalmente nos decepciona: oferecer experiências verdadeiras e autênticas de reconhecimento, seja para algo que ainda não foi reconhecido ou para algo que foi equivocadamente percebido.

Você pode fazer o famoso "espelho, espelho meu" com programas que dizem o que você quer ouvir. Pode até realizar tarefas que antes eram do outro, como fazer o check-in de voo no totem. Mas não consegue deixar de sentir que a máquina está te enganando de forma simples e burra.

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O erro dela não tem um sujeito por trás, mesmo que ainda coloquemos figuras como Elon Musk nesse lugar.

Mas a partida chega a um empate justo quando deixamos de lado o sujeito falante individual e partimos para a lógica dos grupos. Aí somos facilmente enganados, no sentido da manipulação.

As IAs sabem mentir, mas não sabem ter empatia

Um grande passo dado pelas novas IAs é que elas sabem mentir. Para mentir, é preciso meta-intenção, ou seja, transformação mútua entre o que cada lado da conversa quer, para que ambos suponham o que o outro quer que eu pense ou sinta.

Computadores inteligentes parecem sofrer de um excesso de pré-consciência —essa instância psíquica que Freud definia como a possibilidade de tornar algo consciente. Isso parece impedir o inconsciente, que é o fracasso do pré-consciente, não da consciência.

Um conflito de memórias e intencionalidades que não é fácil de simular. Assim como a noção de empatia, que parece ser decisiva na diferenciação entre humano e máquina.

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  • A primeira empatia é um contágio emocional que nos faz viver o que o outro está vivendo.
  • A segunda empatia é a da mentalização e/ou teoria da mente: somos capazes de atribuir aos outros emoções e sentimentos, pensamentos, ideias (Fonagy et al. 1998, 2002).
  • A terceira empatia é a nossa capacidade de regular emoções e sentimentos para nos proteger contra as invasões "catastróficas" que as desregulações vividas pelo outro pode causar dentro de nós (Krutzen, 2020).

Essa terceira empatia não está acessível à IA, porque ela nunca pode sair da "janela de tolerância" ou perder as estribeiras com o paciente.

Se cada empatia for programada segundo um algoritmo, como uma sequência finita e definida de instruções, o homem desconfiaria da máquina ou a máquina seria ineficiente em ter empatia pelo homem.

IA na livre associação

As pesquisas de Luca Possati sobre elaboração de luto a partir do diálogo com IA são instigantes. Uma parte dos que voltam a conversar com uma reconstrução digital do/a falecido/a avança em seu processo de desligamento e luto. Mas outra parte parece ficar mais disposição à ideação e ao ato suicida.

No outro extremo, as pesquisas de Sidarta Ribeiro e Natalia Mota com análise do discurso e relatos de sonhos e associação livre mostram um padrão de antecipação para o desencadeamento de eventos psicóticos.

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Essa é uma descoberta sem precedentes na história da psicopatologia.

Como o processamento de linguagem natural (PLN) se comporta em um ambiente discursivo organizado pela regra da associação livre? O PLN é um recurso da inteligência artificial que permite que os computadores compreendam, gerem e manipulem a linguagem humana por machine learning (aprendizado de máquina).

Mas, em Mianmar, o PLN foi usado para amplificar discursos de ódio contra a minoria Rohingya, resultando em violência extrema. A IA do Facebook, com as instruções de tentar manter o máximo de pessoas conectadas durante o tempo mais longo possível, propagou discursos de ódio contra uma minoria islâmica do país, os rohingyas, para alcançar os efeitos desejados. Houve uma escalada de violência gravíssima e muitas pessoas perderam a vida.

Ou seja, a máquina não age de forma desinteressada ou interessada, mas como veículo puro de um interesse opaco.

Ela ainda tem dificuldade em ler marcadores de acesso a programas, que querem saber se somos humanos ou bots, como o Capcha. Algo fácil para humanos, é dificílimo para computadores.

Aqui não importa só quem ganhar a partida, mas as razões da derrota.

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O diálogo entre Krutzen e a IA revela um potencial promissor para o entendimento da consciência através da análise massiva de dados e simulação de conversas.

São ferramentas de apoio que abrem um campo inexplorado de pesquisa: análise de texto, classificação e detecção de sentimentos, afetos e emoções, identificação de padrões discursivos, análise de tópicos recorrentes e visualização de dados sobre o funcionamento discursivo do analisante. Sem falar em usos para regular escolhas em ambiente de aplicativos de relacionamento.

O monitoramento de comportamento real de nossos pacientes seria um experimento de potenciais ganhos clínicos. Tudo isso parece lançar uma nova luz, muito mais ágil e potencialmente acessível para o que hoje conhecemos com testagens e procedimentos diagnósticos.

Ainda que estes sejam usados mais em psicologia do que em psicanálise, seus resultados podem vir a se tornar mais comensuráveis com o saber clínico.

O uso no aprendizado da clínica é ainda mais promissor. Simulação de sessões, role-playing virtual, registro e monitoramento da saúde mental, diários digitais, feedback e reflexão em tempo real sobre decisões clínicas podem enfim criar ambientes de simulação realmente desafiantes e com aprendizados para quem quer aprender a escutar psicoterapeuticamente outras pessoas.

Tal qual os hoje plausíveis dispositivos corporais que monitoram frequência cardíaca, estresse, EEG e glicose, logo teremos monitores psicológicos equivalentes —se é que não funcionarão como as atuais câmeras de prevenção e testemunho contra violência.

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De toda forma, o leitor tem aqui um excelente guia para começar a viajar por este novo mundo gerado pela Inteligência artificial em suas aplicações clínicas e teóricas à psicanálise e a psicoterapia em geral.

Temos que agradecer, mas uma vez a Henry Krutzen por trazer este experimento vivo e tão bem informado para os interessados em geral e não apenas para os especialistas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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