O compositor e cantor Guto Bellucco folheava o livro "Cadernos Inéditos", com textos de Itamar Assumpção extraídos de seu baú e editados após sua morte. A certa altura, deteve a atenção em alguns versos: "Quando você conheci/ de cara capturei/ de boca aos seus pés caí/ ajoelhei e rezei/ subi paredes, desci/ fui ao inferno e voltei/ não sei porque não morri/ porque não morri não sei". Viu ali uma possível canção.
"Esses versos expressam de uma forma muito potente o estado de quem se apaixona perdidamente, oscilando entre o céu e o inferno", diz Bellucco, explicando a origem das composições reunidas agora no álbum "Mar Adentro", a partir de poemas do ícone da vanguarda paulista, a partir dos manuscritos disponíveis no Museu Itamar Assumpção.
"Quando Você Conheci" já carrega em grande medida a ideia central do disco —canções de mergulho apaixonado no céu e no inferno. "Eu percebi que havia um recorte temático nas letras", diz Bellucco. "Elas falavam muito sobre paixão, solidão, ciúme, coração rasgado. Isso deu o tom do disco".
Houve um processo longo entre compor um punhado de canções sobre poemas de Itamar e entender quais poderiam compor o disco. "Sempre fiz músicas com letras minhas, e de repente me vi com esse parceiro póstumo. Tive que entender como lidar com essa entidade que ele representa. E sou de uma geração que gosta do formato disco e respeita essa ideia de mergulhar numa obra que dura 30 ou 40 minutos."
Quando se convenceu de que tinha um projeto de disco em mãos, Bellucco licenciou as músicas com a família de Itamar e começou a pensar como elas deveriam soar. Convidou Lucas Vasconcellos para ajudá-lo a desenhar a sonoridade refinada e inusitada.
Vasconcellos sugeriu que eles tomassem como referência o primeiro disco de Jards Macalé, de 1972, gravado praticamente ao vivo no estúdio por ele, Tutty Moreno e Lanny Gordin. Montaram uma banda com Guto (voz, violão e guitarra), Lucas (baixo, guitarra e charango), e Gabriel Barbosa "Barbeize" (bateria).
"O disco tem que ter uma unidade narrativa, mas cada música pede algo próprio que realça um aspecto daquele sentimento", diz Bellucco.
Assim, foi fundamental a mão de Marcos Kuzka (viola caipira, clarinete, piano elétrico e sintetizador), que ajudou a ampliar as texturas do disco. Ele assina a produção musical com Vasconcellos, enquanto a produção artística é de Mariana Filgueiras. Ela escreveu com Bellucco a única canção do disco que não é de Itamar, "Mar Adentro".
"‘Mar adentro/ corro e entro/ a onda bate e não saio mais’. Nesses versos, a gente não sabe se aquilo é um encontro ou se o personagem vai se afogar. É esse estado da paixão que você passa do êxtase à tristeza num segundo. Tem também essa referência ao nome do Itamar, o mar".
Há um certo espírito sonoro da década de 1980, mais precisamente do rock menos solar daquele período. "Além de ter sido um período fundamental da produção de Itamar, são uma influência central para mim.Mas falei muito com o Lucas sobre não usar timbres e sonoridades explicitamente 'itamarísticas'."
"Conforme as músicas surgiam, percebi pontes entre meu estilo e o dele. Algumas canções têm traços que lembram o Itamar, como ‘Rap Desculpe", com uma estrutura toda quebrada. Ele tinha essa coisa de não se prender a gêneros. Misturava reggae, swing, as linhas de baixo conduziam a melodia". A presença das vozes femininas também é uma marca de Itamar que aparece no álbum, nas participações de Jadsa e Lucía Santalices.
A despeito da sonoridade, há nos poemas uma faceta menos identificada com o universo de Itamar —um peso emocional que, apesar de estar presente em parte da obra do artista, surge potencializado em "Mar Adentro" pela voz grave e rouca do cantor e pelos arranjos. "O disco vai indo da densidade para algo leve", diz. "Na última música, ele fala ‘a minha onda é andar’. É a possibilidade de continuar caminhando, de não sucumbir frente à paixão."