Genocídios passam impunes e humanidade vai em direção ao fascismo, diz Serj Tankian

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No dia 11 de setembro de 2001, enquanto os Estados Unidos sofriam seu mais emblemático ataque terrorista, o System of a Down chegava pela primeira vez ao topo da lista de álbuns mais vendidos no país, com "Toxicity". Dois dias depois, o vocalista da banda, Serj Tankian, publicou na internet um texto com sua visão sobre os atentados.

Filho da diáspora armênia, nascido no Líbano e criado em Los Angeles, conhecedor da história do Oriente Médio e leitor assíduo de jornais americanos, ele escreveu sobre petróleo e a política externa dos EUA. Tratou os ataques como "uma reação às injustiças que acontecem ao redor do mundo, geralmente invisíveis para a maioria dos americanos".

O texto não pegou nada bem. Não só Tankian estava sendo, na linguagem atual, cancelado, como sua banda quase acabou, quando estava começando a fazer sucesso de verdade. "Você quer que sejamos assassinados? Quem se importa se é verdade?", disseram os companheiros de System, todos de ascendência armênia.

É assim que o cantor começa sua autobiografia, "Down with the System", publicada em maio no exterior e sem previsão de lançamento no Brasil. Mais que a história de um rockstar nada convencional, líder de uma das bandas mais populares do século, a obra é uma reflexão sobre ativismo, criatividade, espiritualidade, justiça e a maior causa de sua vida —o reconhecimento do Genocídio Armênio.

"Sou um ativista que tem grande audiência porque sou artista, e isso gera reações", ele diz à Folha, de seu estúdio em Los Angeles. "Seja com o texto sobre o 11 de Setembro, seja quando as autoridades turcas me perseguiram durante uma turnê, quando você fala verdades ao poder, alguém não vai gostar. Mas sempre tento falar as coisas de maneira lógica, não acredito em ofender."

A trajetória de Tankian é tão artística quanto política, de maneira indissociável. Ele já era ativista antes de se tornar músico, e quando passou a ser conhecido, usou a influência a favor de suas causas.

Se encontrou diversas vezes com políticos americanos para que o país reconhecesse oficialmente o massacre de 1,5 milhão de armênios pelo antigo Império Otomano —que deu lugar à atual Turquia— durante a Primeira Guerra Mundial. Isso aconteceu há três anos, no aniversário de 106 do genocídio.

"Perdi muitos fãs por causa das minhas opiniões políticas, e por não ter medo de falar o que penso", diz. "Decidi cedo que não seria só alguém que entretém —não há problema nisso, há vários e muitos são bons. Mas, se você quer ser artista, tem de ser honesto, e para isso tem de dizer ou criar coisas que vão desagradar."

São falas que têm eco em sua história. Depois de lançar dois álbuns bem-sucedidos em 2005, quando o System of a Down estava no auge, lotava arenas e encabeçava grandes festivais ao redor do mundo, Tankian não quis mais continuar na banda.

Deixou de lado a chance de continuar ganhando muito dinheiro e ter reconhecimento internacional para ir em busca do que, criativamente, fazia mais sentido para ele —compor trilhas para cinema e teatro, gravar com o pai canções armênias e fazer discos sozinho.

Houve brigas e disputas internas, narradas no livro, mas não é como se o quarteto se odiasse. O System of a Down nunca mais criou novos álbuns, mas se reúne de tempos em tempos para fazer turnês —incluindo shows como atração principal do Rock in Rio, em 2011 e 2015, quando também tocaram em São Paulo. Têm uma apresentação com ingressos esgotados em San Francisco marcada para agosto.

"Assumir que uma banda sempre vai funcionar é burrice, não acontece na vida real", diz o vocalista. "Estamos juntos há 30 anos, apesar de nosso impulso criativo ter se concentrado nos primeiros dez. Isso é muito tempo."

O cantor diz que a amizade entre eles continua forte. Isso acontece apesar de o baterista, John Dolmayan, que é cunhado de Tankian, ter saído em defesa de Donald Trump e criticado a obrigatoriedade das vacinas contra a Covid-19, entre outras opiniões divergentes das dos outros integrantes.

"Amo John, é um dos meus amigos mais próximos. Nos vemos de dois em dois dias, nos ligamos diariamente", diz o cantor. "Tivemos nossas divergências sobre política americana no passado, e não sei o que ele pensa hoje. Mas nos amamos e respeitamos. Ele votou no Obama, não quis ir com Hillary Clinton. Sobre a questão armênia e política global, concordamos."

De toda forma, Tankian faz questão de frisar que "um segundo mandato de Trump seria a pior coisa para a Armênia". "Ele ama ditadores —o [presidente da Turquia, Recep Tayyip] Erdogan, o [presidente do Azerbaijão, Ilham] Aliyev, o [presidente da Rússia, Vladimir] Putin. Vai se juntar a eles e vai ser terrível para a Armênia."

Tankian diz que o debate entre Trump e Joe Biden foi patético e compara com o enfrentamento entre Barack Obama e Mitt Romney em 2012. "São dois mundos diferentes, dois países diferentes. É inacreditável. Involuiu ao ponto de ser uma novela, um dramalhão horrível. Podemos ser melhores que isso."

Para ele, os americanos estão inclinados a votar em Trump também por causa do governo atual. "As políticas neoliberais foram tão falhas —isso inclui obviamente o Biden—, e deixaram as pessoas tão descrentes do governo, que eles consideram votar em um maníaco."

Mas, diz o líder do System, Trump nunca teria sido presidente se o Partido Democrata "tivesse deixado as pessoas votarem em Bernie Sanders em vez de trazer Biden para agradar as corporações". "Muita gente na esquerda americana está confusa. Estão distraindo as pessoas com identidade e sexualidade em vez de falar de problemas reais —geopolítica, catástrofes climáticas, guerras."

Tankian afirma que governos de ultradireita são uma reação à crise de refugiados, mas os refugiados são uma reação às guerras e à mudança climática. "Há invasões por guerra entre nações ocidentais e Afeganistão e Iraque, guerra no Iêmen. A falta de chuva na África subsaariana, por exemplo, criou uma grande migração. E alguns países, em especial os EUA, provocam isso emitindo poluição."

Ditadores e líderes de direita que se dizem democráticos, ele diz, cometem crimes de guerra e saem impunes. "No ano passado, o ditador do Azerbaijão deixou 120 mil armênios étnicos passando fome por nove meses na região de Nagorno-Karabakh, terra na qual eles viviam há mais de 2.000 anos."

"Depois, os atacou, fez uma ‘limpeza’ étnica e assumiu o controle das terras. Genocídio, crimes de guerra estão acontecendo neste momento e a maior parte do mundo nem sabe. Todo mundo sabe sobre Israel e a Palestina, mas ninguém sabe disso. Então, sim, a humanidade está regredindo. Estamos caminhando em direção ao fascismo. Não aprendemos as lições dos genocídios do século 20."

Bombardeios na região de Nagorno-Karabakh motivaram o lançamento das primeiras músicas inéditas do System of a Down, que reuniu doações para os afetados nos ataques, em 15 anos. "Protect the Land" e "Genocidal Humanoidz", publicadas em 2020, somam, cada uma, dezenas de milhões de plays no streaming.

As marcas do genocídio armênio acompanham Tankian antes mesmo dele nascer. Ele conta no livro como os avós, os pais e os conhecidos deles foram expulsos de suas terras sofrendo violência de todo tipo —física, psicológica e sexual—, e como essas experiências moldaram sua vida e arte. O próprio músico relata as memórias de tentar dormir ao som de bombas no Líbano, ainda criança.

Já nos Estados Unidos, Tankian estudou numa escola armênia e convivia com movimentos sociais que pregavam a conscientização do genocídio. Ele gravou entrevistas com o avô para o documentário "Screamers", sobre o System of a Down, e também tratou da questão armênia em outro filme, "Truth to Power".

Tankian também fundou uma empresa de software bem-sucedida que só largou para se dedicar à música. O que o motivou foi conhecer Daron Malakian, guitarrista do System, com quem sentiu uma identificação imediata através da maneira com que suas vozes soavam juntas —uma herança cultural e genética da origem armênia de ambos.

A relação dos dois foi o principal motor criativo da banda, com os riffs e arranjos de Malakian e o canto —ora com gritos guturais ora seguindo caminhos melódicos incomuns— de Tankian. A sonoridade de rock pesado com letras que podiam ser espirituosas, existenciais, provocativas ou socialmente conscientes fizeram do grupo um dos maiores e mais improváveis sucessos dos anos 2000.

Mas, hoje, o cantor não perde tempo com o passado. "Não ouço música que já lancei. Estou ocupado criando coisas novas. Em geral, sou muito feliz com o que fizemos."

Tankian, que afirma ter muitos amigos do Brasil, também não sabe dizer se vai voltar ao país para shows com o System. "Vocês saberão quando nós soubermos."

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