Ao longo de três séculos, navios negreiros zarparam da África com quase seis milhões de pessoas que foram escravizadas no Brasil. Existem, porém, outros navios. São embarcações que cruzaram o Atlântico para promover trocas culturais pacíficas entre os brasileiros e os povos africanos.
É o resultado desse intercâmbio que está em evidência na exposição "Outros Navios: Uma Coleção Afro-Atlântica", em cartaz na galeria de arte do Centro Cultural Fiesp, em São Paulo. São mais de 300 peças, como joias, tecidos, máscaras, esculturas e fotografias.
O acervo faz parte do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e começou a ser formado no final dos anos 1960 por influência de Marianno Carneiro da Cunha, à época professor da USP.
O acadêmico trabalhou por dois anos em Ifé, na Nigéria, onde a coleção ganhou forma com obras dos povos banto e iorubá.
"É um conjunto de obras que mostra o interesse do Brasil por um diálogo maior com a África e por criar novas relações com esse continente", diz Renato Araújo da Silva, um dos curadores da mostra.
Diferentemente do que aconteceu durante a expansão imperialista, essas relações foram forjadas de forma pacífica, e não por meio da pilhagem.
Nos últimos anos, o setor cultural testemunhou o surgimento de debates acalorados sobre a apropriação de bens de países pobres por potências europeias. Como forma de reparação, países do sul global têm exigido a devolução dos itens.
"A África foi usurpada desses objetos", diz Silva. "A reparação nunca vai ocorrer totalmente, mas é pelo menos um reconhecimento de que não se pode repetir o que houve no passado."
Os objetos históricos que compõem a coleção foram adquiridos por meio de compras e doações. Depois da aquisição, eles eram enviados para o Brasil por navio, o que inspirou o nome da exposição.
"Existiram os navios da violência, os navios da escravidão", diz o curador. "Mas a gente quer mostrar outros navios. Os navios da cultura e da beleza africana."
Vieram de navio preciosidades como um conjunto de pulseiras, tornozeleiras, colares, anéis e brincos feitos de vidro, bronze e marfim. A coleção de joias africanas da USP é considerada uma das mais importantes do mundo em razão do grande número de peças.
Silva explica que os objetos foram adquiridos quando as populações africanas estavam se desfazendo de joias antigas, trocando itens de bronze por peças de plástico. "Para nós, pode parecer estranho, mas é compreensível. O plástico era a novidade na época."
A mostra traz também trabalhos de artistas contemporâneos, como Denis Moreira, Denise Camargo e Renan Teles.
"Trazer esses artistas foi uma forma de refletir um pouco sobre como eles estão pensando em suas ancestralidades por meio da arte", diz Rosa C. R. Vieira, que também assina a curadoria da mostra.
Além de dar nome ao projeto, a figura do navio serve também como metáfora para a ideia de fluxos e deslocamentos. Esse conceito está evidente em "Ventos no Oeste Africano", um dos sete eixos que compõem a mostra.
Nessa seção, há vestimentas, pentes e esculturas em bronze de países como Gana, Mali e Costa do Marfim.
"São peças que circularam internamente na África Ocidental pelas mãos de comerciantes e pesquisadores", diz Vieira. "Além disso, é interessante pensar que não havia apenas trânsito de objetos, mas também de pessoas e conhecimentos."
A ideia de movimento também está presente na entrada da exposição, onde há uma vitrine com coroas, pulseiras e espelhos de Oxum e Iemanjá. Essas orixás são ligadas às águas, sobres as quais as embarcações se deslocam de um canto a outro.
Aliás, quem andar pela exposição verá outros itens religiosos, como um arco de Oxóssi, o orixá da caça, e uma representação de Exu, ligado à comunicação. Em razão do regime escravagista, essa entidade foi vilanizada e associada ao diabo, figura que não existe nas religiões de matriz africana.
"Muitas dessas religiões estão tão arraigadas na nossa herança cultural que as pessoas acabam não percebendo", diz Silva, o curador. "No fundo, quem tem preconceito contra religiões de matriz africana no Brasil acaba tendo preconceito contra si mesmo."
Ele diz que a relevância da mostra está justamente em aproximar o brasileiro dessa herança africana. "Exposições como essa ajudam as pessoas a descobrirem a si mesmas, porque a África ficou escondida, foi tratada como uma coisa negativa e demoníaca para justificar a escravidão."