Neste mesmo período, também só cresceu o tempo de uso e o acesso ao celular, que contam cada vez mais com câmera frontal, melhor conexão de rede e qualidade de ligações. Houve uma dispersão globalizada.
Muitos autores argumentam que há outros macrofatores que poderiam explicar a crise da saúde mental, representada pelo crescimento de diagnóstico e pelo aumento da percepção social de sofrimento: a guerra ao terror, os ataques armados em escolas, o desemprego, a crise financeira, mudança climática.
Mas cada um destes fatos é cuidadosamente excluído quando traçamos comparações com outros países e culturas.
Baseando-se nisso Haidt desenvolve uma série de leituras e proposições sobre como podemos mudar o curso deste acontecimento:
- retorno ao livre-brincar,
- proibição de celular em escolas,
- idade limite para cada tipo de uso,
- controle jurídico sobre políticas de credenciamento, perfis falsos e anonimato.
O que as redes sociais provocam na nossa mente
As redes sociais patrocinam amplamente as distorções cognitivas descritas por psicólogos como Beck, Seligman e Aronson:
- pensar por tudo ou nada,
- generalização excessiva,
- pensamento mágico,
- filtro mental,
- desqualificação,
- negativismo,
- precipitação (leitura mental de intenções dos outros, do futuro),
- ampliação (catastrofização) ou minimização ("passar o pano") do valor ou peso de uma mensagem, fato ou perspectiva,
- identificação entre emoções e verdade,
- culpabilização como substituto da causalidade ou determinação.
Não podemos desconsiderar o papel da raiva narcísica e dos vieses como o enquadramento forçado, a visão em retrospecto e a confirmação ou auto conveniência.
O uso errático de linguagem digital afetaria nossos sistemas básicos de apego (nossa disposição filogenética à aprender vinculação social por meio de interação lúdica), enfatizando nossos sistemas de defesa em vez de abertura, indagação e curiosidade sobre o mundo.
Nem sempre isso se baseia na redução do tempo de contato com pais ou cuidadores. Nosso modo de criação está cada vez mais orientado por medo, horror ao risco e mensagem de que o outro (indeterminado) é potencialmente perigoso, inclusive em termos de julgamento moral.
Isso resultaria em uma infantilização como atitude genérica de prevenção contra um perigo mal localizado e mal entendido.
É como se estivéssemos corrompendo um certo modo natural de educar, cuidar e socializar.
Corrempendo por que há uma adultização precoce, trazida pela vida "pornográfica" na rede, ao mesmo tempo em que há uma infantilização estendida.
Privação do brincar, privação social, privação do sono e fragmentação da atenção. Isso vira um ciclo que tende a se repetir como uma dependência (ciclo comportamental) e que poderá ser reconhecido por seus gatilhos.
O que há de precário no argumento de Haidt
Apesar de ser um defensor da importância crucial do brincar em crianças e adultos, e ainda que concorde com certos limites de uso, especialmente em contexto escolar, não posso deixar de indicar uma certa precariedade do argumento genérico de Haidt.
Ele afasta as conexões entre a crise de saúde mental e a maneira como estamos trabalhando, consumindo e estudando.
Olha para essas experiências como causa de privações —atacam o sono, as interações lúdicas e o contato com a natureza. E entende o aumento de diagnósticos como expressão de déficits de funcionamento em nível de atenção, linguagem e cognição.
Ocorre que estes dois sistemas, de diagnóstico e de funcionamento social, já são aspectos essenciais do sistema digital, tais como a razão "algorítmica" (cheia de vieses de raça, gênero e classe), a monetização do ódio (narcísico), a aceleração de resposta (precipitação) e a bipolarização (tudo-ou-nada).
Ou seja, é porque estamos em uma moralidade "super-atencional" que os desvios atencionais se tornam tão visíveis e, ao mesmo tempo, tão importantes e intolerados.
Esquecemos que os transtornos mentais não são naturais, como os outros grupos diagnósticos da medicina.
Esquecemos que eles são compostos por uma espécie de convenção, onde excluímos de saída a definição pela causa.
É por isso que depois precisamos procurar causas em outra entidade genericamente definida como "social".
A mente moralista da geração ansiosa
Curiosamente, outro livro de Haidt ("A Mente do Moralista") explica a coincidência entre desvios cognitivos e uso da linguagem digital, assim como a combinação entre aumento de diagnósticos e o crescimento no uso de tecnologia.
Lealdade, autoridade e pureza, com seu correlato mundo de hierarquia, punição e religiosidade, teriam sido "descobertos" como processos psicológicos no interior da linguagem digital.
Isso significa que o conteúdo não importa muito, desde que se consiga mobilizar uma força de convergência unificada envolvendo crer, pertencer e agir.
Isso engendra funcionamentos de grupo onde cada pessoa torna-se uma pessoa tipo uma pessoa-grupo. Uma vez reconhecida desta maneira, ela passa curiosamente a se comportar assim.
Processos de identificação deste tipo são essenciais para que cada um de nós se considere e opere como uma empresa.
Pessoas que operam em "estrutura de empresa" se tornam possíveis não apenas porque o neoliberalismo assim o exige, mas porque quando isso acontece não há mais diferença entre economia e psicologia.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.