Em 2017, a brasileira Skol fez um mea-culpa sobre seus comerciais: "Já faz alguns anos que algumas imagens do passado não nos representam mais", dizia um post da marca nas redes sociais, em referência à representação feminina, predominantemente sensual, em seus reclames. Dois anos antes, a marca da Ambev foi alvo de protestos feministas por espalhar outdoors com a frase "Esqueci o 'não' em casa".
Apesar de não citar esses episódios, um livro lançado neste ano nos Estados Unidos relata quais eram, naquela mesma época, os debates na AB InBev, gigante das bebidas que controla também a Ambev. O tema de Anson Frericks, que trabalhou no conglomerado entre 2011 e 2022 e chegou a presidente de vendas e distribuição, é outra cerveja leve, a Bud Light (marca que inclusive já teve de se retratar por sugerir que o álcool acaba com o "não").
Em "Last Call for Bud Light: The Fall and Future of America's Favorite Beer" ("Última chamada para Bud Light: a queda e o futuro da cerveja favorita dos Estados Unidos"), Frericks se propõe a explicar por que a marca perdeu a liderança do mercado americano para uma cerveja de origem mexicana, Modelo Especial.
A derrocada evidente foi em 2023, quando as vendas do rótulo desabaram 30% depois que uma ativista trans estrelou um vídeo de marketing para o 1º de abril. Dylan Mulvaney comemorava os 365 dias de redesignação sexual, processo descrito pelo autor do livro como "a transição de um homem biológico em uma mulher".
Mas, na visão do executivo, os problemas são mais profundos e envolvem o negócio como um todo. Bud Light é uma marca da cervejaria Anheuser-Busch, parte do grupo AB InBev, que tem entre seus controladores os brasileiros Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles.
Para o autor, a companhia, conhecida por sua obsessão por eficiência, remuneração fortemente ligada a resultados, corte de custos e meritocracia, aderiu na última década à "cultura woke". O termo pejorativo é comumente associado por conservadores a pautas de diversidade, mas Frericks define a expressão como, na figura de um CEO, "alguém que usa sua posição para promover uma ideologia política progressista não relacionada à sua função corporativa".
"Por essa definição, a Anheuser-Busch decididamente estava ficando mais woke", afirma ele.
"A meritocracia foi minimizada. A ‘diversidade’ foi maximizada. A AB InBev mudou seu princípio que dizia ‘Seremos julgados pela qualidade de nossas equipes’ para ‘Seremos julgados pela qualidade e diversidade de nossas equipes’", escreve o executivo. Ele critica, por exemplo, a adoção de relatórios sobre a igualdade de gênero entre os funcionários e políticas de incentivo para que os departamentos fossem mais diversos.
É um diagnóstico que ressoa com o ambiente de negócios de hoje. Em um processo que se acelerou com a volta de Donald Trump ao poder nos EUA, uma série de grandes empresas desistiu de políticas voltadas à sustentabilidade e à diversidade, acabando por exemplo com metas de inclusão de grupos minoritários.
A crítica a siglas como ESG (meio ambiente, social e governança) ou DEI (diversidade, equidade e inclusão) é global –no mês passado, a vice-presidente de Pessoas da Vale disse no Instagram que, em substituição ao DEI, ganha força o "MEI (Mérito, Excelência e Inteligência)". A mineradora depois disse que não há mudanças em suas políticas e diretrizes para a agenda de diversidade e inclusão.
A tese de Frericks é a de que Bud Light é uma cerveja puramente americana, com um público-alvo bastante masculino, e perdeu a mão ao deixar essa essência.
Formado por universidades de elite como Yale e Harvard, ele conta que tomava muito dessa marca quando dividia moradia com vários amigos na juventude. E acusa a vice-presidente responsável pela cerveja na época da crise com a ativista trans de ter "insultado uma grande porção da base de consumidores de Bud Light". Ela havia dito a um podcast que o rótulo, já naquela época com dificuldades de manter participação de mercado, era muito voltado aos caras da fraternidade das universidades.
No campo da marca e do marketing, o que o executivo propõe é uma volta a tempos mais simples, sem tantas regras ou padrões para retratar grupos minoritários, com foco no público majoritário. O chamado "senso comum" muito propagandeado por Trump.
O autor diz, por exemplo, que nos anos 1990 Bud Light "teve provavelmente o primeiro comercial ‘transgênero’ entre qualquer marca". E explica o conceito da campanha "Noite das Damas", sem se preocupar em diferenciar identidade de gênero e homens que se vestem com roupas femininas por diversão.
"Nesses comerciais populares e memoráveis, homens se vestiam como ‘damas’ para aproveitar as promoções de cerveja no bar. Eles até competiam em esportes como sinuca para ganhar uma Bud Light grátis. Era engraçado. Era ousado. Era típico do ambiente universitário. Era autenticamente Bud Light. Os clientes adoraram. As vendas dispararam."
Folha Mercado
Receba no seu email o que de mais importante acontece na economia; aberta para não assinantes.
Uma questão que intriga especialistas é por que a marca não se recuperou do boicote, como já aconteceu com outros produtos. Uma análise publicada na revista Harvard Business Review no ano passado indicou que Bud Light fica no centro do espectro político, com consumidores tanto à direita quanto à esquerda. Isso a deixa mais vulnerável.
"Assumir uma posição sobre qualquer questão polarizadora pode potencialmente afastar uma grande parte de sua base de clientes", dizem as pesquisadoras.
Para além da pauta progressista na propaganda ou no posicionamento de marketing, o autor busca caracterizar a Anheuser-Busch como uma empresa tipicamente americana, antes controlada por uma família que fazia parte de uma dinastia do país, que acabou, no fim das contas, tomada por estrangeiros (especialmente brasileiros) "que nunca entenderam o consumidor americano".
Na avaliação de Frericks, os primeiros anos depois da fusão, fechada em 2008, foram positivos: os executivos forjados na cultura da Ambev levaram à gastadora empresa americana aspectos de eficiência e corte de gastos, como negociações mais duras com fornecedores e o orçamento base zero (estratégia em que cada despesa deve ser justificada de novo a cada ano, em vez de usar os gastos do ano anterior como ponto de partida).
Mas, no relato dele, isso deixou de fazer efeito ao longo do tempo, já que não era necessário apenas cortar custos, mas sim ganhar mercado. As menções à nacionalidade dos executivos do conglomerado são constantes no livro, em frases como "outro brasileiro que não entendia o mercado americano ou as marcas da AB InBev".
"Bud Light estava em declínio? Sim. Isso era verdade. Grande parte desse declínio foi autoinfligido. Executivos de marketing belgas e líderes de vendas brasileiros haviam implementado programas que não ressoaram com a população americana", afirma o autor.
Procurada, a empresa não se manifestou sobre o assunto.
A AB InBev ainda tem hoje duas das três marcas de cerveja mais vendidas nos EUA: Bud Light e Michelob Ultra. Este rótulo, de baixa caloria, é o que mais ganha mercado no país, segundo balanço divulgado pela corporação nesta semana. Apesar disso, a receita da empresa no país caiu 2% no ano passado.
Bud Light nunca se recuperou completamente do baque de 2023, mas tem apostado em posicionamento "para os caras": seu comercial para o Super Bowl deste ano, chamado "Os grandões da vizinhança", trouxe dois homens jogando latas de cerveja para o alto para animar um churrasco.