Elizabeth Hughes, a menina que sobreviveu à 'terapia da fome' e foi salva pela insulina

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Não é exagero dizer que, até 1922, receber o diagnóstico de diabetes tipo 1 era uma sentença de morte.

Pessoas que desenvolviam essa condição —marcada por problemas na produção do hormônio insulina no pâncreas e dificuldades no aproveitamento da glicose, o "combustível" do corpo — sobreviviam por poucos meses, no máximo um ano.

Isso porque, até a terceira década do século 20, não existia nenhum tratamento disponível para lidar com esse desajuste.

Na tentativa de encontrar soluções, alguns médicos americanos desenvolveram uma solução radical e polêmica: as chamadas "terapias da fome".

Elas consistiam basicamente em manter o paciente com diabetes —em sua maioria, crianças e adolescentes —sem comer por dias ou semanas, até que não fosse mais possível detectar glicose na urina deles.

Depois, esses indivíduos recebiam uma dieta com pouquíssimas calorias, baseada em proteínas e gorduras, com baixa oferta de carboidratos (a principal fonte de glicose).

No entanto, uma intervenção tão severa como essa não dava resultados: ou a família desistia por não aguentar o sofrimento de quem era submetido ao tratamento, ou o paciente apenas sobrevivia por poucos meses para morrer depois de inanição ou de alguma infecção oportunista, já que o corpo ficava muito frágil.

Mas houve pelo menos uma exceção nessa história: a jovem americana Elizabeth Evans Hughes.

Ela aguentou a "terapia da fome" por cerca de dois anos, tempo suficiente para que tivesse acesso a um tratamento inovador que acabara de ser criado no Canadá: a insulina.

A vida por um fio

Antes de entrar nos detalhes da biografia de Elizabeth, vale fazer uma breve explicação sobre o que é o diabetes —e porque ele era uma sentença de morte antes do desenvolvimento dos tratamentos com insulina a partir de 1922.

Todas as células de nosso corpo dependem da glicose, obtida por meio dos alimentos, especialmente dos carboidratos, para funcionar direito.

Essa fonte de energia é digerida no intestino e cai na corrente sanguínea. Mas, para ser aproveitada pelas células, a glicose depende da insulina, um hormônio produzido pelo pâncreas.

Trata-se basicamente de um processo de chave e fechadura: a insulina se liga às células e "abre as portas" para que a glicose possa entrar ali e ser usada como combustível.

Em pessoas com diabetes tipo 1, no entanto, há uma falha na fabricação da insulina. O próprio sistema imunológico delas ataca o pâncreas e destroi de forma definitiva as unidades que produzem esse hormônio.

Essa doença costuma dar os seus primeiros sinais ainda na infância e na adolescência —e trata-se de um quadro totalmente diferente do diabetes tipo 2, que costuma surgir mais tarde, em que a insulina até é fabricada, mas há uma resistência do corpo em utilizá-la adequadamente por uma série de fatores (que envolvem excesso de peso e outras doenças crônicas, entre outras coisas).

De volta ao diabetes tipo 1, a falta da insulina faz com que a glicose se concentre na corrente sanguínea. E isso dispara uma série de mecanismos de emergência do organismo.

"O corpo não consegue identificar que há falta de insulina. Ele começa a aumentar a secreção de hormônios reguladores da fome e do apetite e usa os estoques de gordura e proteína presentes no fígado, nos músculos e no tecido gorduroso como fonte de energia", detalha a médica Solange Travassos, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes.

O resultado prático disso é o emagrecimento, a perda de massa muscular e uma sensação cada vez maior de fome—apesar da enorme quantidade de glicose disponível na circulação.

"Nesse processo de conversão de proteínas e gorduras em glicose, o organismo desidrata e produz ácidos, que alteram o pH do sangue. Isso gera um quadro chamado cetoacidose diabética, que pode levar à morte", complementa a especialista.

Ela era filha do político Charles Evans Hughes, que foi governador do Estado de Nova York, membro da Suprema Corte, Secretário de Estado e candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos nas eleições de 1916 (quando foi derrotado por Woodrow Wilson).

O diagnóstico da menina aconteceu num período em que a "terapia da fome" estava em alta nos EUA.

Os principais defensores do método —baseado numa restrição radical das calorias, até o paciente não ter mais glicose em exames de urina —eram os médicos Frederick Allen e Elliott Joslin.

Allen recebeu Elizabeth como paciente e sugeriu que ela fizesse um jejum total durante uma semana. Depois, ela poderia comer cerca de 500 calorias por dia, ou um quarto do que é preconizado atualmente por instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Quando a glicose dela estivesse controlada, ela poderia comer 1.250 calorias ao dia.

Ao começar o tratamento, a menina estava com 34 quilos. Durante as primeiras semanas, ela chegou a pesar apenas 24 quilos. Pouco depois, voltou a ganhar uns três quilos.

Aliás, essas informações são conhecidas até hoje porque Elizabeth mantinha tabelas e registros meticulosos sobre sua saúde, e sempre contou com o auxílio de uma enfermeira que a acompanhava o tempo todo.

Na pior fase da terapia, em meados de 1921, quando a saúde de Elizabeth ficou bem frágil, ela chegou a pesar somente 20 quilos.

Um artigo assinado pelo sociólogo Allan Mazur, da Universidade Syracuse, nos EUA, aponta que "é difícil julgar se o regime do Dr. Allen prolongou a vida de Elizabeth".

"Ela não gostava do tratamento e nem do Dr. Allen, mas aderiu à dieta com o acompanhamento de sua enfermeira", aponta o texto.

Mazur demonstra que, mesmo à época, a "terapia da fome" já era controversa, estava baseada em evidências frágeis e muitos dos pacientes submetidos a ela morreram, literalmente, de fome.

Travassos lembra que esse tratamento foi proposto numa época em que não havia nada a ser feito para ajudar as pessoas com diabetes.

"Era uma tentativa de deixar as pessoas vivas por mais tempo", diz ela.

"Mas a verdade é que a 'terapia da fome' não evitava a morte. Ela só prolongava a vida em condições muito deletérias", complementa a médica.

Na hora certa, no lugar certo

Como mencionado anteriormente, Elizabeth estava com uma condição de saúde muito frágil entre 1921 e 1922. Porém, notícias que vinham do norte trouxeram um sopro de esperança.

É que naqueles anos os cientistas Frederick Banting e Charles Best, da Universidade de Toronto, no Canadá, conseguiram isolar a insulina e desenvolveram as primeiras versões do tratamento para diabetes tipo 1 que é usado até os dias de hoje.

Em julho de 1922, a mãe de Elizabeth, Antoinette Carter Hughes, escreveu para Banting e solicitou que ele incluísse a filha nos testes clínicos da nova abordagem terapêutica.

O médico canadense, no entanto, não pode atender o pedido de bate-pronto, pois ainda não tinha um suprimento constante e estável de insulina —a substância precisa ser aplicada regularmente, todos os dias, para manter os níveis de glicose no sangue sob controle.

À época, o extrato de insulina era obtido de forma praticamente artesanal, a partir do processamento de pâncreas de animais —hoje em dia, a medicação é feita em laboratórios modernos, a partir de bactérias geneticamente modificadas que fabricam esse hormônio.

No mês de agosto daquele mesmo ano, Allen fez uma visita a Banting e o relembrou do caso de Elizabeth. Naquele mesmo mês, com a anuência dos pesquisadores canadenses, a menina, a mãe dela e a enfermeira viajaram e chegaram a Toronto no dia 15.

Os registros históricos revelam que Banting "ficou surpreso de Elizabeth ainda estar viva". Afinal, ela estava extremamente magra, com cabelos finos e quebradiços, a pele seca e escamosa, e mal conseguia andar de tanta fraqueza.

Banting decidiu aplicar a insulina imediatamente em Elizabeth e aumentou a dieta dela aos poucos. Em cerca de duas semanas, a menina já comia a quantidade de comida adequada para alguém da faixa etária dela.

Elizabeth permaneceu em Toronto por mais algumas semanas e descreveu o progresso de sua condição em cartas remetidas à família nos EUA.

"Pensar que eu terei uma existência normal e saudável está além de minha compreensão", confessou ela.

Numa carta de novembro de 1922, perto de voltar aos Estados Unidos, a menina contou que recebeu a visita de seu antigo médico - que não a reconheceu após o ganho de peso e a volta da saúde após alguns meses de terapia com insulina.

"O Dr. Allen só conseguiu soltar um "Oh" e ficou de boca aberta. Ele disse repetidamente que nunca tinha visto uma mudança tão grande em alguém."

"Quando estava saindo, ele fez uma piada ao falar que estava feliz por ter sido apresentado a mim. Caso contrário, não saberia quem era aquela menina", detalhou Elizabeth.

Quando Elizabeth chegou ao Canadá, em agosto de 1922, ela pesava 20 quilos e fazia uma dieta de 1.125 calorias por dia. Três meses depois, em novembro, ela estava com 35 quilos e consumia 2.500 calorias diárias.

Uma paciente a frente de seu tempo

Vale dizer que Elizabeth não foi a primeira pessoa a receber insulina dentro dos testes da Universidade de Toronto.

O pioneiro aqui foi o canadense Leonard Thompson, que à época tinha 13 anos.

Outro caso famoso nesses primeiros momentos da descoberta da insulina é o de Teddy Ryder, que tinha apenas cinco anos quando recebeu o tratamento —e se tornou a primeira pessoa a viver mais de 70 anos após o diagnóstico de diabetes tipo 1 (ele faleceu em 1993, aos 76 anos).

Numa famosa carta de agradecimento que escreveu a Banting quando ainda era criança, Teddy relata: "Agora sou um menino gordinho e me sinto bem. Posso até escalar uma árvore."

Numa carta de agradecimento a Banting, o jovem Teddy Ryder escreveu: "Querido Dr. Banting. Gostaria que você viesse me ver. Sou um garoto gordinho agora e me sinto bem. Posso escalar uma árvore. Margaret também gostaria de vê-lo."

Mas nesse rol de pioneiros, Elizabeth se destaca por ter sido o primeiro rosto público do sucesso do tratamento com a insulina —como ela era filha de um político americano importante, o caso foi amplamente noticiado nos jornais americanos e canadenses.

O historiador Christopher Rutty, professor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Toronto, destaca que "Elizabeth virou uma pesquisadora da própria doença que tinha".

"Elizabeth é uma daquelas pessoas que estava no lugar certo, na hora certa", avalia o especialista.

"Muito além do fato de ser filha de alguém importante, ela era muito brilhante, inteligente e engajada."

"Com isso, contribuiu de uma forma significativa para os estudos clínicos e as melhores formas de aplicar a insulina num período em que não existiam informações sobre isso", complementa ele.

O historiador ainda lembra que a chegada da insulina há pouco mais de um século foi um marco na Medicina difícil de ser comparado com outros avanços.

"Do ponto de vista médico, há poucas ocasiões em que um novo tratamento fez algo como a insulina. Falamos aqui de crianças que chegavam famélicas, em estado de inanição, à beira da morte e, após poucas doses, se recuperaram. É quase como se elas voltassem dos mortos", raciocina ele.

Rutty destaca que Elizabeth também inovou ao ser uma das primeiras pessoas com diabetes a aplicar insulina em si mesma —algo que hoje é feito rotineiramente por milhões de pacientes com a doença ao redor do mundo.

Para Selina Hurley, curadora de Medicina do Museu de Ciências, no Reino Unido, a descoberta da insulina revela a importância do trabalho coletivo.

"Mais do que um momento 'eureka' [aquela ideia inovadora e brilhante desenvolvida repentinamente por um único indivíduo], as inovações surgem a partir de uma série de descobertas, feitas por diferentes pessoas ao longo de muitos anos", lembra ela.

Não à toa, a insulina continuou a ser estudada e foi motivo de três prêmios Nobel —em 1923, para Frederick Banting and John MacLeod (pela descoberta desse hormônio); em 1958, para Frederick Sanger (que determinou a sequência de aminoácidos da insulina); e em 1964, para Dorothy Hodgkin (que detalhou a estrutura dessa substância).

"Essa história também nos mostra o quanto ainda não sabemos sobre a insulina e o diabetes, uma vez que, passado um século, ainda não temos uma cura para essa doença."

Mas Hurley destaca que a chegada da insulina não representou o fim de todos os problemas para quem tem diabetes.

"Essa história continua viva hoje quando pensamos em acesso. Em muitos lugares, obter insulina ainda está relacionado ao lugar onde você mora e se você consegue pagar pelo tratamento", diz ela.

Travassos, que tem diabetes há quase 40 anos, concorda com essa avaliação.

"Se ficar sem insulina, não sobrevivo dois dias", confessa a médica.

"E nossa luta continua a ser sobre o acesso à educação e ao tratamento do diabetes", complementa ela.

Curiosamente, ao voltar para os EUA, Elizabeth praticamente não falou mais sobre ter diabetes de forma pública —e chegou a destruir alguns registros e diários em que mencionava o assunto.

Rutty especula que Elizabeth "não queria fazer um grande caso ou chamar a atenção" para a doença que precisava manter sob controle.

"A insulina é algo que passa a fazer parte da vida dessas pessoas, que precisam administrar as doses ao longo da vida", observa o historiador da Universidade de Toronto.

"Quando ela começou o tratamento, era uma menina jovem e estava grata por ter sobrevivido. Mas queria seguir em frente", justifica ele.

O especialista destaca que o também historiador canadense Michael Bliss, que escreveu livros sobre a história da insulina em meados dos anos 1970 e 1980, encontrou Elizabeth e perguntou se poderia contar tudo o que ela viveu.

"No início, Elizabeth estava hesitante em falar abertamente sobre o tema. Mas depois, entendeu o valor histórico do relato dela", conta Rutty, que fez seu doutorado sob a orientação de Bliss.

Um artigo publicado no periódico acadêmico The Lancet detalha que ela permitiu que todo o material fosse divulgado depois que ela morresse.

Elizabeth se formou na Universidade Columbia, em Nova York, e se casou com o advogado William T. Gossett. Ao longo da vida adulta, atuou em diversos órgãos de apoio à educação e foi uma das fundadoras da Sociedade Histórica da Suprema Corte dos EUA, da qual foi presidente nos anos 1970.

Elizabeth faleceu em 1981, aos 73 anos —quando havia recebido cerca 42 mil injeções de insulina ao longo da vida.

Texto originalmente publicado aqui.

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