'Elis Regina defenderia o andar de baixo hoje', diz o filho João Marcello Bôscoli

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Uma repórter da TV Cultura pergunta a Elis Regina, em 1981, enquanto ela rodava o país com o show "Trem Azul", se ela se sentia realizada como mulher e profissional. A artista respondeu de forma direta: "De jeito nenhum, nem num ponto, nem no outro. Tenho três filhos que não estão totalmente criados. E tem tanta coisa para acontecer na minha vida de cidadã comum. Na minha vida profissional, eu não cheguei nem na metade do que pretendia". A cantora morreria meses depois, em janeiro de 1982, em sua casa.

Elis completaria 80 anos neste dia 17 de março. Para celebrar seu legado, seu filho mais velho, João Marcello Bôscoli produz o show "Elis 80", com João Bosco, Fagner, Ivan Lins —alguns dos principais compositores interpretados pela cantora—, e seu irmão, Pedro Mariano. Quase sem ingressos disponíveis, o evento afasta a chance da artista, morta há 43 anos, ser esquecida —possibilidade que assombrava Bôscoli.

"Era um medo infantil, que logo se transformou em ações. Era uma preocupação porque antes, quando colocava a mão na cama dela, eu sentia o calor, e o calor foi se perdendo. As roupas, o cheiro dela, foram se perdendo."

O produtor cita outras grandes cantoras contemporâneas à Elis que, segundo ele, foram esquecidas com o tempo de forma "dolorosa e estranha", o que reforçava seu temor. Entre elas, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Nara Leão e Sylvia Telles.

O tributo à artista, que ocorrerá no próximo dia 28 no Espaço Unimed, em São Paulo, conta com o auxílio da inteligência artificial, que permitiu extrair a voz original de Elis de gravações de estúdio de forma limpa para ser acompanhada por uma banda ao vivo.

"Quando você está lá dentro, se fechar os olhos, é como se ela estivesse ali. O som sai das caixas exatamente como saía, com a energia que ela sempre transmitiu", diz Bôscoli. A seleção do repertório também faz uma homenagem à forte ligação que Elis tinha com os compositores. No setlist, canções como "Cartomante", de Ivan Lins, "O Bêbado e a Equilibrista", "O Mestre-Sala dos Mares" e "Dois pra Lá e Dois pra Cá", de João Bosco, "Mucuripe" e "Noves Fora", de Fagner.

Além do carisma e do talento de Elis, Bôscoli acredita hoje que a artista não será esquecida devido às ações feitas, tanto pela família quanto por outros, para manter sua obra viva. Ele cita a cinebiografia "Elis", a biografia "Elis Regina - Nada Será Como Antes" e o espetáculo "Elis, a Musical".

O produtor lembra também da campanha da Volkswagen, de 2023, com sua irmã, a cantora Maria Rita, na qual o rosto de Elis é recriado por inteligência artificial enquanto uma atriz a interpreta. Mãe e filha cantam "Como Nossos Pais" e dirigem cada uma uma Kombi.

O comercial passa de 33 milhões de visualizações no YouTube da Volkswagen e gerou intensa repercussão nas redes sociais a respeito de possíveis regras para uso de inteligência artificial em peças publicitárias. O produtor, que não participou diretamente do projeto, viu com bons olhos a homenagem. "Se eu tivesse um arrependimento, falaria aqui, mas muito pelo contrário, foi excelente para a Elis, aumentou as buscas por ela e o seu número de ouvintes".

Apesar de não terem participado do projeto, Bôscoli e Mariano tiveram de aprová-lo. "Chegou para mim que a Maria ia fazer uma campanha para a Volkswagen com uma interação com Elis. Na hora eu falei ‘pô, que legal, deve ser emocionante para ela’. E já assinei."

O produtor diz que ele e seus irmãos compartilham um respeito mútuo quando o assunto é preservar a memória de Elis. "O que um faz, os outros dois apoiam. Nunca dissemos não um para o outro."

Bôscoli também é autor de outra grande homenagem à artista. Seu livro "Elis e Eu", de 2019, responde a uma pergunta que ouviu muito ao longo da vida, "você se lembra da sua mãe?", e narra com afeto os 11 anos, seis meses e 19 nos quais conviveram.

Nesse livro, a grande estrela da música está presente, mas principalmente a mãe dedicada. Em um dos trechos, o produtor, ainda criança, parece descobrir a fama da mãe, quando vão à feira juntos e são assediados pelas pessoas. Enciumado, ele percebe que a mãe era dele, "mas Elis era do mundo". "Ela nunca deixou de fazer feira, de encapar caderno, de cuidar de nós três", conta à Folha.

Para separar a dimensão materna da artista, Bôscoli até hoje se refere a ela como Elis. "Acho que a Elis é uma parte da minha mãe. É a face pública da minha mãe. Então assim, eu entendo que essa Elis não é minha. Essa Elis é uma personalidade coletiva que só está onde está por causa das pessoas. A minha mãe já é uma outra coisa."

O livro começa com a morte da artista, quando o então namorado Samuel Mac Dowell entra na casa para tirá-la desacordada do seu quarto em direção ao hospital. Na correria, o filho mais velho tem tempo só para esticar o braço e sentir pela última vez o calor do seu corpo ainda vivo.

A partir daí, a narrativa se desenvolve avançando no tempo, quando revela a solidão na qual se encontrou João Marcello após seus irmãos serem levados pelo pai deles, César Mariano, enquanto ele tinha dificuldades em se vincular o próprio genitor, Ronaldo Bôscoli.

Depois, o livro volta no tempo para revelar muitas das traquinagens feitas por Bôscoli, e a reação de Elis a elas. Também conta como a artista equilibrava a maternidade, com seu trabalho, suas relações amorosas e a posição diante da ditadura militar.

Alguns dos pontos altos de "Elis e Eu" são os castigos que Elis dá em Bôscoli. Como quando ele compra materiais escolares e diz que a mãe pagaria depois, sem que ela soubesse, e ele é obrigado a devolver, depois de ouvir "sua mãe é rica, mas a minha não". Ou quando ele vai à casa de um colega, filho de um político supostamente corrupto, e Elis o expulsa de casa.

Em outro momento, Elis coloca o filho em uma escola pública para ele "conhecer o Brasil de verdade". Preocupação que revela também a consciência política da artista.

Se estivesse viva hoje, acredita Bôscoli, "ela estaria do lado que a gente imagina que ela estaria, defendendo o ser humano, a classe artística, o andar de baixo, como sempre, que é de onde ela veio e onde ela se sentia bem. Não é possível imaginar a Elis com alguma postura anti-humana".

Em uma carta para Elis, escrita logo depois de sua morte, o cartunista Henfil diz que a artista foi "morta" pelos homens ao seu redor. "Nós, homens, te matamos, mulher. Você dobrou tua voz e venceu. Dobrou teus negócios e venceu. Dobrou tua consciência política e venceu. Quis ser mulher livre e perdeu".

"Estou com Henfil nesse caso. Ela vivia um momento de tristeza, insegurança, exploração e crueldade", diz Bôscoli, que é categórico ao afirmar que a mãe não morreu de overdose. Ele então corrobora a entrevista dada pela cantora à TV Cultura. "Ela não faria isso com três filhos em casa, cheia de planos."

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