A fachada de uma casa no Parque da Represa, bairro de chácaras afastado do centro de Paulínia, no interior de São Paulo, destoa da vizinhança. Os vidros que separam a residência da calçada estão cobertos por lonas pretas, e, no portão, não há interfone ou campainha. Para conversar com o pintor Nilton Cesar dos Santos, só mesmo batendo palmas para provocar o latido dos cachorros.
"As crianças voltaram a sorrir, mas não é fácil, né? Não estamos tendo apoio psicológico", diz ele, que se recusou a abrir o portão e só se deixava ver por algumas frestas. "O que vou falar para você? É só aguardar", afirmou.
Ele fazia referência ao julgamento de sua mulher, a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, de 39 anos, que se tornou conhecida por pichar, com batom, a expressão "perdeu, mané", na estátua "A Justiça", que fica diante do STF (Supremo Tribunal Federal), durante os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.
A pichação reproduzia uma frase do ministro Luís Roberto Barroso dita a bolsonaristas em Nova York, logo depois das eleições presidenciais.
Débora é acusada de cinco crimes: golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado democrático de Direito, deterioração do patrimônio tombado, dano qualificado do patrimônio público e associação criminosa armada.
No fim de março, a cabeleireira nascida em Irecê, na Bahia, deixou a penitenciária de Rio Claro, também no interior paulista, onde ficou dois anos detida. Passou a cumprir prisão domiciliar naquele endereço de Paulínia, cidade na região de Campinas, a 119 km da capital paulista, com o marido e os filhos —um de 11 anos e outro de 8.
Em sua decisão, o ministro do STF Alexandre de Moraes impôs restrições a ela, como o uso de tornozeleira eletrônica e a proibição de conceder entrevistas e de usar redes sociais. Débora também não pode receber visitas, com exceção dos pais, dos irmãos e dos advogados, nem se comunicar com envolvidos na invasão dos três Poderes.
O marido de Débora fechou com concreto a porta do salão onde ela atendia os clientes. Segundo ele, a família vive, há dois anos, apenas de seus serviços como pintor.
O letreiro do Studio D, inicial da cabeleireira, ainda está lá, no mesmo terreno da casa. Santos afirma que Débora tem chorado com frequência. "Não estamos recebendo ajuda de ninguém, a gente só tem ajuda da família. É nós por nós", diz o marido, que se nega a alongar a conversa para detalhar a história de sua mulher e externar suas opiniões sobre o episódio.
O julgamento de Débora foi suspenso por pedido de vista do ministro Luiz Fux, que disse ver penas exacerbadas em alguns casos. Até então, havia dois votos, de Moraes e Flávio Dino, pela condenação de Débora a uma pena de 14 anos.
A história da cabeleireira de Paulínia virou símbolo do debate pela anistia aos condenados no 8 de janeiro, que tanto mobiliza a base bolsonarista no Congresso. Aliados do presidente Lula (PT) dizem que o objetivo é usar o texto para livrar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de punição pela trama golpista.
Na semana passada, Bolsonaro levou a mãe de Débora, Maria de Fátima, e a irmã, Cláudia, ao palanque de uma manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, para pressionar o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), a votar a matéria.
Com pouco mais de 110 mil habitantes, Paulínia tem na Replan, refinaria da Petrobras, sua principal fonte de renda. Nos anos 2000, houve uma tentativa de diversificar a economia, com a criação de um polo cinematográfico, mas a ideia não foi para frente.
Assim, o estúdio, que produziu os blockbusters "De Pernas Pro Ar" e "Bruna Surfistinha", além do teatro da cidade, sede de um antigo festival, estão abandonados. Entre 2013 e 2018, Paulínia teve 12 prefeitos, em um cenário de instabilidade política. O bolsonarismo foi a única força que se estabilizou no poder.
O ex-presidente teve 59% dos votos na cidade, no segundo turno contra Lula (PT). Em 2018, conquistara 71% contra Fernando Haddad (PT).
A hegemonia do PL se iniciou com os mandatos de Du Cazellato como prefeito, que trocou o PSDB pelo PL, em 2019. No ano passado, Cazellato emplacou no cargo um aliado seu, Danilo Barros (PL). Barros iniciou a trajetória política no PCdoB e, depois de uma mudança para o PR, em 2016, acabou no partido de Bolsonaro, para se eleger como prefeito.
Ele recusou o pedido de entrevista sobre o caso de Débora, seguindo uma tendência dos vereadores eleitos, nenhum deles de uma sigla de esquerda. Somente o vereador Fábio Valadão (PL) concordou em falar. "Não conheço a Débora, a família ou o processo. Sei que ela sofreu para caramba. Espero que haja justiça, a pena acho excessiva", afirmou, em seu gabinete.
Do lado de fora da Câmara, existem três monumentos que replicam a lei orgânica do município, ao lado da Constituição e da Bíblia, onde se pode ler o versículo "este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei."
A postura de Valadão é comum à população da cidade. Embora ninguém deixe de manifestar apoio às pautas bolsonaristas, todas as pessoas ouvidas pela reportagem negaram ter visto ou conhecido Débora, como se ela tivesse virado um tabu.
"A corda arrebenta para os mais fracos. O certo é fazer uma investigação profunda sobre o que ocorreu. Não foi uma tentativa de golpe, mas um jeito de quebrar o Lula", diz o pedreiro Jacó Zacarias, 62.
"Não conheço Débora. Eu sou bolsonarista roxo. Por que 14 anos? Acho que o Moraes é Lula", afirma o comerciante Jonas Santos, 49. Ele se declara cristão e CAC (colecionador, atirador desportivo e caçador) e, em sua loja de ração para animais, mostra, com orgulho, as armas de chumbinho e de gás que vende.
"Já ouvi falar do caso dela, mas não a conheço. A nossa cidade sempre foi de direita. Sou de esquerda e católico, uma minoria. Acho que o que ela fez foi um dano ao patrimônio da gente. Catorze anos é pouco", diz o relojoeiro Maciel de Souza, 60.
Professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Vera Chueiri também diz não ver a pena como excessiva. Ela enfatiza que Débora não é acusada somente pela pichação, mas por um conjunto de crimes contra a democracia. "Não foi mero acaso. Esse episódio significa o desdém que essas pessoas têm em relação às instituições", afirma.
Em Paulínia, o burburinho não é político. As pessoas parecem mais interessadas na Festa do Peão, que acontece neste fim de semana. A dupla sertaneja Zé Neto e Cristiano é uma das atrações do evento. Em 2022, Zé Neto declarou voto em Bolsonaro e ainda xingou o Supremo, durante uma apresentação.
A cidade fica a 37 km de Santa Bárbara do Oeste, município da família que hostilizou Moraes no aeroporto de Roma, há dois anos. As pessoas da região vão, com frequência, até Campinas, a maior cidade das redondezas.
Débora, por exemplo, frequentava um dos vários templos da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que foram erguidos em Campinas. Os adeptos da denominação creem que vivemos nos fins dos tempos, pregam o repouso aos sábados e têm cuidados específicos com a saúde, muitas vezes evitando carne e café.
O antropólogo Raphael Scheffer Kalil, que escreveu o livro "Crentes", afirma existir uma concentração de igrejas adventistas nessa cidade, onde foram instaladas as universidades da denominação. Ele conta que Bolsonaro fez acenos aos adventistas quando, em 2019, sancionou a lei que assegura o direito dessas pessoas de faltar a aulas ou provas em dias de sábado.
"Os adventistas possuem particularidades teológicas que são rejeitadas ou vistas com desconfiança pela maioria dos evangélicos ", diz ele. "Existe uma ligação da igreja com Bolsonaro, mas não é diferente dos evangélicos."
Em depoimento, Débora disse que pagou R$ 50 do próprio bolso para viajar até Brasília, onde chegou no dia 7 de janeiro, um sábado, e dormiu no acampamento diante do Quartel-General do Exército.
Afirmou ainda que agiu "no calor do momento", não invadiu nenhum prédio, pediu desculpas ao STF e chorou. O julgamento de Débora Rodrigues dos Santos deve ser retomado no dia 25 de abril, uma sexta-feira, no plenário virtual da corte.