Documento expõe uso de negros escravizados para escapar de Guerra da Cisplatina há 200 anos

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Um documento amarelado pelo tempo, encontrado pela Folha no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, expõe mais uma faceta perversa da escravidão: a utilização de cativos para substituir senhores e seus parentes no alistamento obrigatório para a Guerra da Cisplatina, que aconteceu na fronteira sul do Brasil entre 1825 e 1828 e matou mais de 8.000 brasileiros.

A Guerra da Cisplatina foi um conflito militar entre o Império brasileiro e as Províncias Unidas do Rio da Prata, pela disputa da região onde fica hoje o Uruguai. As batalhas se estenderam por três anos, causando grande desgaste ao imperador Dom Pedro 1º, a ponto de ter sido um dos principais motivos para sua abdicação ao trono, em 1831.

Com grande número de deserções, o governo imperial brasileiro apertou o cerco em busca de soldados para engrossar suas fileiras na guerra. Por esse motivo, um grupo de fazendeiros da Vila de Cachoeira, na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, enviou um abaixo-assinado à Câmara local. No documento, escrito à mão, Antônio José de Menezes tenta convencer as autoridades da necessidade da dispensa do alistamento dele e dos demais proprietários de terras, já que enviara seus escravizados e libertos para a linha de frente do conflito.

"Que o primeiro suplicante é um súdito deste Império tão útil à coroa que já por si, e por seu sócio Feliciano da Costa Leite, e em benefício de seus vizinhos, pagou a sua custa uma porção de homens libertos, e escravos seus, vestiu, armou, e proveu de todo o preciso para a guerra, dando-lhes a necessária cavalgadura, e os pôs na campanha", disse o fazendeiro.

Em outro trecho do documento, num pedido mais direto, os estancieiros (como eram chamados no Rio Grande do Sul) argumentaram: "portanto recorrem os suplicantes a VV.SS.as como cabeça do povo, para que a bem do mesmo hajam de orar pelos suplicantes ao Ex. Sr. Presidente da Província (...) e que o suplicante e mais lavradores continuem no laborioso trabalho de seus braços, e guarda de suas sacrificadas famílias; pois que ausentando-se do distrito em que residem, ganharão calor os desertores e mal feitores, juntar-se-ão com a escravatura, e serão esta vila e distrito a vítima mais desgraçada da província". Não se sabe, pelo documento, se o pleito foi atendido.

Esse documento ilustra bem o que costuma dizer o historiador Mário José Maestri Filho, um dos principais estudiosos sobre escravidão no Rio Grande do Sul. Segundo ele, "no século 19, os ricos e seus filhos e netos só iam para as guerras quando queriam". Isso porque era praxe enviarem substitutos —principalmente escravizados ou negros libertos— para a linha de frente das batalhas. "A prática de pagar um substituto era uma instituição que vinha desde os tempos coloniais", lembrou Maestri Filho.

Jurandir Malerba, historiador com estudos sobre a elite imperial brasileira, disse que a prática de utilizar escravizados para substituir seus senhores nas guerras foi um expediente recorrente ao longo do século 19, não só no Rio Grande do Sul.

"Em várias escaramuças, em diferentes regiões, até mesmo na Guerra do Paraguai (1864-1870) se usou do expediente de ‘comprar’ a liberação do recrutamento, de um filho, por exemplo, por escravizados, eventualmente libertados para ir morrer na guerra no lugar de outrem", afirmou.

Na província de São Pedro do Rio Grande a prática era ainda mais comum, dado o grande número de cativos disponíveis. Isso porque nos anos que antecederam a Guerra da Cisplatina, entre 1816 e 1822, houve grande incremento na importação de escravizados para abastecer a intensa produção de charque que movimentava a economia local.

Segundo estudos realizados pelo historiador Manolo Florentino, essa região sulina se transformou naquele período num dos principais destinos da redistribuição dos cativos desembarcados no porto do Rio de Janeiro.

Quando eclodiu a Guerra da Cisplatina, em 1825, além dos escravizados mandados por seus senhores para lutarem pelo governo imperial, muitos cativos fugiram para se alistar nas tropas inimigas, em troca da liberdade.

"Desde o princípio dos conflitos na Banda Oriental, José Gervasio Artigas (líder da parte inimiga do Brasil) e seus aliados recrutaram negros e mulatos livres e libertaram escravos de espanhóis e de rio-grandenses", escreveu o historiador Gabriel Aladrén, no trabalho acadêmico intitulado "Experiências de Liberdade em Tempos de Guerra". "Com efeito, a quantidade de fugas aumentou muito no Rio Grande, especialmente na região da fronteira sul."

Foi nesse contexto que o naturalista francês Augustin de Saint-Hilaire destacou em seu livro "Viagem ao Rio Grande do Sul": "(...) todos são unânimes em afirmar que, dos soldados de Artigas, os que em todas as ocasiões mostraram mais coragem foram os negros fugidos; o que é natural, porque eles lutam por sua própria liberdade".

A participação de escravizados nos conflitos rio-grandenses foi além da Guerra da Cisplatina.

Na Revolução Farroupilha, movimento separatista e republicano que lutou contra o governo imperial, entre 1835 e 1845, as tropas dos rebeldes e das milícias dos fazendeiros locais envolvidos no movimento eram formadas, sobretudo, por negros, pardos e caboclos.

Ficou famoso o penúltimo confronto dessa revolução, ocorrido em 14 de outubro de 1844, no qual mais de cem soldados negros foram vítimas de uma emboscada e morreram no episódio conhecido como "massacre de Porongos". Como escreveu o pesquisador Júlio José Chiavenato, a utilização dos negros como "bucha de canhão" é prática antiga, "uma tradição inaugurada no século 16 – o século do descobrimento".

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