Na cultura afro-brasileira, especialmente no candomblé, os Ibejis são celebrados como protetores das crianças, e são honrados em festas e oferendas que incluem doces e brinquedos. Essa prática tão comum no Dia das Crianças e no Dia de São Cosme e Damião traz um toque de alegria e pureza ao culto dos orixás. Em meio a folia e descontração, associam-se esses orixás travessos à alegria e à inovação.
Além disso, os Ibejis são conhecidos por sua natureza protetora, e, por isso, são venerados especialmente por famílias que buscam harmonia, proteção e bênçãos para seus filhos. Assim como percebemos na reflexão a partir de cada orixá, a natureza deles é complexa, pois também simboliza o equilíbrio entre forças opostas e complementares.
São gêmeos e, como tal, personificam tanto a individualidade de cada ser quanto a unidade que existe em pares. Na sabedoria dos povos ancestrais, quando filhos gêmeos nascem em uma família é sinal de bons presságios, o que aparece em diversas mitologias. São exemplos os irmãos Rômulo e Remo, fundadores de Roma, e as divindades maias Hunahpú e Ixbalanqué, que enfrentam senhores do submundo e restauram a ordem e a vida.
Em um itã registrado no livro "Mitologia dos Orixás", de Reginaldo Prandi, conta-se que os Ibejis viviam a vida como uma grande brincadeira e decidiram pregar uma peça em Iku, a própria morte. Iku é conhecida por não errar data nem endereço, mas em tempos primordiais sua voracidade estava além do normal, e os orixás gêmeos decidiram interceder.
Os dois elaboraram um plano. Um deles seguiria por uma trilha perigosa, cheia de armadilhas criadas por Iku, enquanto o outro se esconderia na mata. O primeiro tocaria um tambor, enquanto o segundo se ocultaria, e, depois de um tempo, eles trocariam de papéis, tocando por longas horas.
Quando o primeiro irmão começou a tocar na trilha de Iku, a morte se pôs a dançar, encantada com aquele ritmo divertido. O plano evidenciou a astúcia dos Ibejis, pois Iku, incapaz de perceber a troca dos irmãos, dançou tanto que se esgotou, implorando para que parassem com aquelas batidas enfeitiçadas. Tanto insistiu que os gêmeos propuseram um pacto: eles parariam com a música, mas Iku deveria cessar as armadilhas que levavam os humanos a morrer antes da hora.
A morte cumpriu seu pacto, e os Ibejis, satisfeitos, retornaram a brincar, que é o que realmente adoram fazer. É preciso de muito talento e poder ancestral para pôr a morte para dançar. Enquanto dançava extasiada, a morte equilibrou seu ofício, trazendo paz ao mundo, e a estabilidade se fez perene quando o pacto com as crianças passou a vigorar.
Desde então, a morte segue dançando ao som dos toques encantados. O problema não era a música dos Ibejis, pelo contrário, mas ela ter sido presa pelo toque até ficar cansada. Mas tão verdade que a morte precisa trabalhar —como já refletiu brilhantemente o escritor José Saramago em "As Intermitências da Morte"— é a associação entre a dança e a liberdade, entre a alegria e as crianças.
Desde então, artistas de todo o mundo servem o palco para a morte dançar. Um deles se foi nesta semana —Quincy Jones, icônico no mundo da música e do entretenimento, com uma carreira que abrange mais de seis décadas e contribuições que foram fundamentais para a música contemporânea. Reconhecido por seu trabalho como produtor, compositor, arranjador e músico, foi um dos multitalentos mais bem-sucedidos de todos os tempos.
Jones também transformou a arte em alegria, leveza e resistência. Embora se divertir era mesmo o que gostava, ele, como já contou em várias entrevistas, não teve uma vida apenas de brincadeiras, pelo contrário. Ao longo de sua vida, entre tantas adversidades que passou, uma que mais o marcou foi conviver com os problemas de saúde mental de sua mãe, um dos motivos que o levou a desenvolver trabalhos filantrópicos em prol da população negra durante toda a sua carreira.
Um deles foi o fomento de carreiras eternizadas na história da música estadunidense e de todo o mundo. Artistas como Ray Charles, Aretha Franklin, Donna Summer, como também os nossos imensos Milton Nascimento e Djavan, foram apoiados e/ou produzidos por Jones. Gigantes que puderam pôr a morte para dançar e, ao fazê-lo, ajudaram a aplacar sua voracidade e inspiraram sonhos por todo o mundo.
Ao ser o que foi, Jones entrou para o hall de pessoas que fizeram seu próprio pacto com a morte e, à sua maneira, tornou-se imortal. E em cada acorde que ele deixou, em cada semente plantada que virou imensas florestas, lá está ele grandioso, produzindo, tocando, cantando, enquanto a morte dança contente.