Ágota Kristóf nasceu na Hungria, em 1935, e se refugiou na Suíça, após o fracasso da revolução húngara de 1956, que tentou subtrair o país da antiga Cortina de Ferro.
Residindo em Neuchâtel, passa a escrever a sua obra em francês, incluindo a sua "Trilogia dos Gêmeos" (1986-1991), como a nomeia a editora Dublinense, de Porto Alegre; ou "Trilogia da Cidade de K.", como é chamada em Portugal, ou ainda "Trilogia do Caderno", como ficou conhecida em língua inglesa.
Entre os jovens, a história alcançou renome mundial como inspiração da terceira versão do videogame "Mother", criado por Shigesato Itoi e lançado pela Nintendo em 2006. "Mother-3", entretanto, não atingiu o mesmo sucesso estrondoso das duas primeiras versões, adaptadas para a língua inglesa como "Earthbound". Curioso que nada disso seja mencionado nas orelhas dos volumes, que tampouco trazem qualquer aparato crítico.
O primeiro livro, intitulado "O Grande Caderno", é narrado numa estranha primeira pessoa do plural, na qual um irmão não se distingue do outro, nem mesmo nos nomes. Pensam juntos, agem juntos, falam juntos etc. São parte de "um só ser", e decidem passar a limpo a sua vida em cadernos, onde escrevem e reescrevem o que se passa com eles.
Narram basicamente o período de adaptação pelo qual passam desde quando a "Nossa Mãe", durante a Segunda Grande Guerra —, que, entretanto, não é nomeada—, deixa os gêmeos na casa da "Nossa Avó" no interior, perto da fronteira, por conta do bombardeio da capital onde vivem.
A Avó, que apenas os chama de "filhos de uma cadela" e que é, por sua vez, chamada de "Bruxa" pelos moradores do vilarejo, não os quer lá, mas acaba tendo de os aceitar. A narração desse primeiro livro, o melhor da trilogia, é lacônica, dura, com frases curtas e declaratórias na maior parte do tempo.
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Ela se faz como imagem do treinamento implacável que os garotos criam para si e que consiste em aniquilar qualquer sentimento doloroso que possam ter com a falta da mãe, do pai ou da vida boa que tinham antes.
Trata-se de um programa intenso de disciplina espiritual, no qual os gêmeos se aplicam em busca de um estado de "apatheia" ou "ataraxia", de ausência de dor, como diriam os estoicos, ou de "indiferença", como diria Ignácio de Loyola.
Ao cabo dos exercícios, tornam-se tão invictos quanto amorais, ainda que movidos de algum senso primitivo de justiça. Por conta disso, o relato ganha um tom entre fabular (que lembra por exemplo, o tipo de crueldade de "João e Maria") e surrealista (sobretudo quanto naturalizam o crime).
O segundo livro, intitulado "A Prova", refere um período posterior à separação dos gêmeos, cuidadosamente planejada por eles a fim de aprenderem a viver sós, cume do treinamento da superação da dor. A narração passa a ser de terceira pessoa, e apenas aí os gêmeos recebem nomes distintos, conquanto sejam também anagramas: "Lucas" e "Claus".
O tom surrealista cede ao naturalista, centrado num duplo incesto: o de uma menina com o seu pai retornado do front, e o de um dos gêmeos com uma bibliotecária viúva, que julga ser idêntica à mãe.
Há ainda, nessa segunda parte, a inserção de duas histórias trágicas: a de um escritor bêbado que não suporta a vigilância da irmã costureira, e o de um homem que não dorme desde o assassinato da sua mulher pelo "Partido" que controla o país, a fim de nacionalizar as suas fábricas.
No último livro, intitulado "A Terceira Mentira", a narrativa tem duas partes em primeira pessoa, cada uma delas assumida por um dos gêmeos. É quando o enigma revela ter origem num trauma irreparável, chamado de "a coisa", pois sequer pode ser dito, tal o seu impacto sobre a vida psíquica e familiar dos gêmeos.
No princípio, portanto, era o trauma, não o verbo, mas a trilogia romanesca é o discurso possível da verdade que não pode ser enunciada. Ou seja, a ficção enigmática é a forma possível dessa verdade impossível de contar. A ficção opera então como uma espécie de efeito-rebote, uma doença colateral do que não pode ser dito, mas tampouco calado.