"Creyó que el mar era el cielo; que la noche la manãna. Se equivocaba" —pensou que o mar fosse o céu; que a noite fosse manhã, enganava-se. A canção "Se Equivocó la Paloma", do argentino Carlos Guastavino, com poema de Rafael Alberti, desvela de forma privilegiada a musicalidade do tenor Rolando Villazón em seu recital em duo com o harpista Xavier de Maistre.
O programa, que integra a temporada Cultura Artística deste ano, apresentado pelo badalado cantor de origem mexicana, naturalizado francês, e pelo instrumentista virtuose nascido em Toulon, na França, traz 17 canções latino-americanas entremeadas por quatro solos de harpa. Ele parte do álbum "Serenata Latina", lançado pela dupla em 2020.
Na canção de Guastavino o pleno controle vocal de Villazón encontra na harpa de Maistre a ambiência necessária e o comentário precioso. O tenor desenha no ar frases longas e coloridas; respira quando quer, e estabelece múltiplos degraus para variar a intensidade sonora. O harpista faz de seu instrumento um "gigante violão acompanhador", sustentando harmonias cromáticas, levadas rítmicas e solinhos idiomáticos.
Além da Argentina, Colômbia, Venezuela, Cuba, México e Brasil tiveram canções apresentadas. Com exceção das três peças do cearense Alberto Nepomuceno, cantadas em um português um tanto hesitante, o restante do programa foi todo em espanhol, o idioma natal de Villazón.
Tido como herdeiro do tenor espanhol Plácido Domingo —que também viveu a infância e iniciou a carreira no México—, Rolando Villazón vendeu mais de 2 milhões de discos, e já cantou os principais papéis de tenor do cânone operístico. Xavier de Maistre é um dos grandes responsáveis pela ampliação do repertório da harpa na atualidade.
Impecáveis do ponto de vista do canto lírico, algumas interpretações de Villazón podem soar um tanto exageradas para ouvidos versados nas sutilezas do canto popular. De fato, o estilo "heroico antigo" do tenor de ópera pode soar grandiloquente ao abordar uma singela melodia pentatônica como "Arrunango", do venezuelano Antonio Estévez, ou até artificial, na trova moderna de "En Estos Dias", do pós-bossa novista cubano Silvio Rodriguez.
E mesmo numa canção em si tão forte como o clássico "Alfonsina y el Mar", de Ariel Ramírez, a impressão de um tom pucciniano idealiza além da conta a triste história da mulher que, em sua solidão, "vestiu-se de mar para buscar novos poemas". Neste caso, porém, a opinião do crítico é minoritária: "Alfonsina" foi o número mais aplaudido na noite de quinta-feira (10).
Embora pouco à vontade no português —com os "ós" e "és" pronunciados de forma fechada, e a despeito de haver pulado alguns dos versos de Osório Duque Estrada em "Trovas"—, foi muito interessante ouvir a canção de câmara brasileira na voz de Villazón, com destaque especial para "Coração Triste", melodia de Nepomuceno com versos de Machado de Assis.
Em seus números solo, de Maistre também flertou com a música brasileira ao tocar "Brasileirinho" e "Tico-Tico no Fubá". Ao contrário do violão, que tem os graves perto do coração, a harpa tem os agudos colados ao peito: os graves têm que ser pinçados ao longe, afastados do corpo.
Os finais de frase caprichados, mas muito soltos ritmicamente, rompem com a pulsação severa típica da música popular com influência afro-brasileira. O virtuosismo do harpista, porém, compensa tudo isso e, para além da incursão no choro, sua interpretação da "Dança Espanhola", de Manuel de Falla, foi estonteante.
É um privilégio poder escutar artistas dessa magnitude ao vivo e em um recital acústico. As "Canções Populares Argentinas" desconstruídas pelo sensacional Alberto Ginastera, originais para canto e piano, pareciam ter sido compostas para harpa.
E o final, com a mexicana "La Bikina" —sucesso do estilo mariachi na voz do ídolo popular Luis Miguel— trouxe um pouco de tudo: potência vocal, virtuosismo instrumental, e até mesmo uma bem-vinda dramaticidade latina.