Em uma entrevista ao diário francês Le Point, a autora dinamarquesa Solvej Balle descreveu uma habilidade bastante peculiar dos escritores: modelar o tempo. Parece ser esse o talento que desenvolve a protagonista Tara Selter ao longo da septologia "Sobre o Cálculo do Volume", cujos dois primeiros volumes acabam de ganhar edição brasileira pela editora Todavia.
A obra, agraciada com o Prêmio de Literatura do Conselho Nórdico, é o resultado de vinte anos de trabalho de Balle, mas se concentra em um único dia, 18 de novembro. Ou melhor, em vários dias 18 de novembro.
O primeiro livro começa no 121º episódio da fenda temporal em que a protagonista se encontra. Como no longa "Feitiço do Tempo", de Harold Ramis, o calendário trava num mesmo dia, com seus mesmos fatos corriqueiros, sons, cheiros e interações.
Mas, diferentemente do pastelão noventista, Balle propõe uma série de reflexões filosóficas sobre como o espaço, a rotina, a sociabilidade humana e o autoconhecimento são regidos por nosso hábito ancestral de contar o tempo. São essas indagações que conduzem a trajetória de Tara.
Se, inicialmente, ela tenta inteirar o marido Thomas, de quem é sócia em um negócio de revenda de livros antigos, do estilhaçamento temporal, pouco a pouco, se resigna diante da nulidade do esforço. Afinal, ela parou no calendário, mas segue sentindo a passagem do tempo, ao passo que ele parou no tempo, mas vive a passagem do calendário.
Ela, então, se entende como um monstro devorador do tempo. Seu consumo existe; as coisas que ela compra desaparecem da prateleira do mercado. Os objetos que ela usa, em geral, amanhecem usados. Isolada em um cômodo da casa onde os dois vivem numa cidade imaginária no norte da França, ela passa a estudar a relação que cada coisa tem com o tempo. E o redemoinho kafkiano se converte em metaliteratura, conforme ela redige as memórias de seu 18 de novembro reincidente.
Balle —bem como o tradutor Guilherme da Silva Braga— é muito competente em construir uma escrita espiralar, capaz de redundar tanto conteúdo quanto forma, sem que o texto fique repetitivo. Pelo contrário, esse estilo possibilita que o primeiro volume, a contemplação de uma rotina quase sem acontecimentos notáveis, construa a clausura do momento, que será rompida no segundo livro, quando a protagonista tem a ideia quântica de se apoderar do espaço para mitigar a estagnação temporal.
Ao invés de envelhecer sozinha como testemunha silenciosa da rotina sonora do marido, Tara aproveita a conta bancária auto-renovável e parte numa viagem de trem pela Europa. Resolve celebrar um Natal fora de época com os pais na Bélgica, persegue o inverno indo para o Norte da Europa, e no verão, ruma ao Sul. Faz da experiência geográfica um remédio para o estancamento temporal.
Com essa virada do primeiro para o segundo volume, a história de Tara Selter se equilibra sobre a corda bamba das perguntas filosóficas subjacentes ao romance: o tempo existe? Alguém que cai para fora dele segue existindo? Se o tempo de um indivíduo se estilhaça, a sociedade segue existindo? Se o ontem ocorre para uma única pessoa, ele acontece mesmo?
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São indagações interessantes, amparadas numa história bem construída e em um texto fluido e original. Mas são também, na economia do romance, profundamente eurocentradas. Os desafios da sobrevivência parecem há tanto superados nas estruturas socioeconômicas do mundo da protagonista, que o tempo estilhaçado abunda. O dia 18 de novembro de Selter não é ultraprodutivo. É um dia normal, e seus dias normais são idílicos.
E isso pode soar curioso ao leitor do Sul. Afinal, sonhar com a paralisação do tempo em abstrato é quase um privilégio, num mundo em entropia como o nosso. Como um nórdico branco, médio, remanescente do estado de bem-estar social, observa um relógio parado? Bem, com a cabeça lotada de angústias individuais e a barriga bem forrada.