É impossível falar de "Araya", cuja cópia restaurada integra a programação da 13ª Mostra Ecofalante, sem mencionar, primeiro, sua autora, Margot Benacerraf. Ser mencionada como pioneira do cinema da Venezuela, onde nasceu em 1926, já não seria pouco. Mas às dificuldades conhecidas da atividade na América do Sul, acrescentam-se algumas outras.
A primeira e primordial: Benacerraf era mulher, judia e de família rica. E de uma mulher judia de família rica esperava-se naquele tempo que conseguisse um marido também rico e depois se dedicasse à família.
Margot abriu mão desse destino, tornou-se estudante de filosofia e, em seguida, prosseguiu sua formação nos Estados Unidos e na França. Batalhou para fazer filmes, conseguiu fazer apenas dois. Um dos que não conseguiu fazer foi "Cem Anos de Solidão". Tinha os direitos do livro de Gabriel García Márquez, mas levou tempo demais buscando levantar a produção, e o escritor colombiano não renovou os direitos.
Conseguiu, em troca, criar a Cinemateca Nacional de Venezuela, em 1966, que em seguida dirigiu por três anos, e ter seus dois filmes —além de "Araya", o curta "Reverón", de 1952, sobre o escultor venezuelano Armando Reverón— citados pelos dois mais importantes historiadores franceses do cinema da era clássica, Georges Sadoul e Jean Mitry.
"Araya", seu filme de 1959, participou do Festival de Cannes no mesmo ano em que a Palma de Ouro foi para "Orfeu do Carnaval", de Marcel Camus. Embora esquecível, o filme de Camus era marcante pela música —Tom Jobim, Luiz Bonfá, Vinicius de Moraes— e por trazer dois atores negros —Breno Mello e Marpessa Dawn— como protagonistas. Sua vitória tinha a ver com um crescente interesse na Europa pela América Latina.
E "Araya" vinha, nesse sentido, a calhar. O documentário, que Benacerraf rodou sem nem mesmo poder ver as imagens —a revelação foi feita na França apenas depois de ter sido rodado—, impressiona, antes de mais nada, pela beleza "mexicana": aquele preto e branco que aproveita magnificamente de contrastes de luz e sombra.
A beleza produzida chama a atenção, mas não qualifica Benacerraf como uma esteta. Bem longe disso: trata-se de narrar o rico veio de sal de Araya, na Venezuela. Tão rico que, no passado, obrigou o reino de Espanha a construir uma fortaleza para defendê-la de piratas, traficantes de escravos, mercadores de pérolas, ou seja, invasores em geral.
Na abertura, a terra seca, desértica, onde nada foi produzido, como bem explica a narração —como o roteiro, concebida por Margot em parceria com o poeta e editor francês Pierre Seghers. O momento seguinte dedica-se aos trabalhadores. Às longas filas de carregadores que, não é modo de dizer, trabalham de sol a sol. E da infância à velhice, com seus corpos carcomidos pelo sal, o que não raro os impede de trabalhar.
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Todos os instrumentos estão lá: as pás, os carrinhos, os cestos, que ao longo do dia produzem pequenas pirâmides brancas. O documentário detém-se em detalhes do transporte até o porto e de lá para o mundo exterior, mas também observa as casas paupérrimas em que se vive e, com idêntica paixão, a pesca, que garante a sobrevivência dos trabalhadores do sal, mas também o carro-pipa que lhes traz água.
Trata-se, já se vê, de um documentário de caráter humanista, com evidentes preocupações sociais. Não possui a desenvoltura política ou estética que caracterizaria, alguns anos depois, o cinema novo brasileiro. Em troca, é importante observar que tudo, ali, vem da imagem: nenhum apelo sentimental é lançado.
Benacerraf não é dessas que chora junto com seu objeto. Sabia que o melhor é mostrá-lo: basta olhar para ver a que tipo de vida são condenados os homens e mulheres de Araya.
É um filme a reter, seja pela descrição precisa de um modo de vida (e morte) terrível, seja por, apesar disso, buscar nela a beleza não só das paisagens como das pessoas.
Filme digno de uma pioneira, de uma rebelde também, que precisa ser reconhecida como uma força notável do cinema não só de seu país como da América Latina. Margot nasceu em Caracas e morreu na mesma cidade em 24 de maio deste ano, aos 97 anos.