Oscar Jayack é um escritor magrelo, com orelhas de abano e "olhinhos de fuinha". Busca a aprovação dos outros e odeia quando não a recebe. Seus amigos são o álcool, a maconha e os remédios tarja-preta. Passa os dias em joguinhos no celular, enchendo a cara e dormindo.
Rebecca Latté é uma atriz na virada dos 50 anos. Bonita e famosa, reconhece com ironia seu declínio ("É humilhante sumir do mapa só porque envelheci") sem esquecer de suas virtudes ("Meus seios são monumentais, prova da existência de Deus"). Foge do tédio com heroína e sente desprezo por quem usa drogas legalizadas.
Os dois protagonizam "Querido Babaca", da escritora e cineasta francesa Virginie Despentes, que já trabalhou como empregada doméstica, prostituta e jornalista musical. A história traz ainda Zoé Katana —jovem feminista do movimento #MeToo e assessora de imprensa de Oscar, ela usa a internet para denunciá-lo por assédio moral e sexual.
Construído a partir de trocas de mensagens e posts nas redes sociais, o livro de Despentes captura com bom humor o espírito contemporâneo na forma de um romance epistolar, espécie de versão atualizada do clássico francês "As Relações Perigosas", obra libertina publicada pelo francês Choderlos de Laclos no século 18.
Rebeca e Oscar se conheceram na adolescência, pois ela era a melhor amiga da irmã dele. Nunca mais se viram, mas Oscar acompanhou de longe a carreira da atriz.
Anos mais tarde, ele a reencontra em Paris. A timidez o impede de se aproximar, mas nas redes ele se torna valente: "O fascínio da sedução feminina acabou virando um sapo", escreve no Instagram. "Não apenas velha. Mas gorda, descuidada, a pele nojenta."
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Rebeca responde, Oscar devolve e, entre réplicas e tréplicas, ora ácidas, ora ternas, os dois passam a trocar confidências sobre seus vícios e a violência das redes sociais, a pandemia e a psiquiatria, o envelhecimento e as dietas. A despeito das rusgas, criam um elo.
"Queria te cuspir da minha vida", diz Oscar às tantas, para depois constatar: "Estamos nos escrevendo há semanas e você se tornou a pessoa mais próxima de mim".
Fragilizado com o linchamento virtual que se segue à denúncia de Zoé, o escritor encontra guarida justamente na atriz a quem tripudiou. "São do meu time", ela diz, "pessoas que admitem a derrota, admitem a fraqueza, revelam o que têm de mais zoado".
Zoé se comporta na internet como "uma deusa da destruição". Na vida real, não passa de uma menina prestes a desabar. Quando é massacrada pelo tribunal das redes, esse lugar "visceral" onde ninguém está disposto a estender a mão e reconciliar, Rebeca a conforta, mesmo sendo crítica dos excessos das jovens feministas.
No caso da atriz, o cancelamento vem via indústria do entretenimento, ávida por atrizes jovens e magras. Com ojeriza à ideia de se vitimizar, papel que recusou mesmo após ser estuprada, a atriz faz troça de sua vulnerabilidade. "Não me identifico com essa mulher que sou", diz. Para manter a imagem da linda jovem que traz dentro de si, desvia os olhos do espelho ao sair do banho.
A tática de se esquivar serve também para outros fins. Quando Oscar passa a frequentar o grupo Narcóticos Anônimos, a atriz dá de ombros. Argumenta que está neste mundo há décadas e se dá muito bem. "Só a palavra reabilitação me faz pular da janela", debocha. Depois, admite que tem medo de tentar abandonar o vício e falhar.
A antítese que serve como título não é mera ironia. "Querido Babaca" indica que é possível enxergar o outro e criar laços, sem dogmatismo. Com seus personagens vulneráveis e contraditórios, humanos, afinal, Despentes tece uma ode à camaradagem.