Crítica: Peça 'Carne Viva' é um poema triste sobre a opressão das mulheres

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A atmosfera é sombria como nos romances góticos ingleses. O senso estético é apurado. O texto é denso, indigesto, como um bife cru. O impacto visual é inevitável em "Carne Viva", peça que cumpre temporada no Sesc 24 de Maio, até 20 de abril.

O espetáculo celebra os 20 anos de carreira de Luh Maza como diretora e dramaturga. Além do texto e do cenário, ela assina também a encenação. Escrita à mão, em folhas de papel, em 2003, quando a autora tinha 16 anos, a história que já foi incluída em coletâneas e ganhou montagem em Portugal há uma década é apresentada agora ao público brasileiro.

Concebido como um monólogo, o texto é defendido por três atrizes diferentes que assumem a personagem. Ela, ao preparar uma maminha para a refeição familiar, tem um delírio ao se ver como Jesus Cristo, o que desencadeia uma intensa reflexão. A personagem que não tem nome —é batizada de "uma mulher"— conta então sua história, uma trajetória de opressão e infelicidade conjugal.

Luh Maza oferece um espetáculo enxuto, onde tudo parece ter sido visualmente pensado. Ao longo de uma hora, o público acompanha a vida desta mulher sofrida, oprimida por uma sociedade patriarcal. Ainda que instigue questões acerca do papel da mulher e de igualdade de gênero, o texto não é panfletário.

Maza ambienta a trama em uma caixa escura. No centro, há apenas uma mesa enorme com cadeiras. Um cenário limpo que impressiona visualmente. É bonito, mas opressor. O gigantismo do móvel parece diminuir as figuras femininas. A mesa se faz suprema na ambientação das questões que habitam o imaginário e o cotidiano da personagem.

A decisão de alternar a personagem entre as atrizes Christiane Tricerri, Mawusi Tulani e Tenca Silva imprime fluidez à cena. As três apresentam interpretações um tanto equilibradas, conferindo, apesar das particularidades de cada uma, unicidade à dramaturgia, enquanto se alternam nesta personagem que transita entre a cozinha e a sala de jantar.

Tudo contribui para um clima lúgubre, como os figurinos escuros pesados de inspiração vitoriana, uma época marcada por restrições morais, assinados por Telumi Hellen e Mari Morais, e a iluminação soturna criada por Aline Santini, que explora muito bem o jogo de luz e sombra, desenham o clima pretendido.

Recursos sonoros de Malka Julieta amplificam a sensação do macabro por um lado e do onírico por outro, assim como a trilha sonora original do compositor português Bruno Campos, que sublinha a ação com um réquiem.

Esta sensação de sonho —ou pesadelo— que se vale de símbolos que jogam com o sacro e o profano leva o espectador a se perguntar o quanto da narrativa da mulher em cena é real ou não. Ou o quanto a realidade a massacrou fazendo tomar dentro dela uma dimensão própria, trágica.

A autora, aliás, define a peça como uma tragédia. O espetáculo parece brincar com conceitos da tragédia clássica e da moderna. Estaria a personagem fadada a cumprir o destino a ela traçado pelos deuses como na tragédia clássica? Seria a rebeldia, a revolta, escolha dentro de seu livre arbítrio, conquista do mundo cristão em que a personagem habita? Ou, ainda, seria o livre arbítrio direito diminuto às mulheres em uma sociedade patriarcal?

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Este sentimento de irrealidade cresce ajudado pela natureza do texto, de caráter mais poético do que dramatúrgico. O lirismo sobrepõe-se ao jogo teatral, o que causa no público alguma estranheza e distanciamento do que está sendo dito.

Há também uma atemporalidade que ajuda a esfumaçar a trama —figurinos sugerem um passado mais distante, embora certas questões aproximem esta mulher dos tempos atuais. Uma personagem sem tempo e que atravessa os tempos.

Luh Maza opta por marcações plásticas, ressaltando a equivalência das três atrizes. A cena se desenrola quase como uma obra coreografada, como quadros em uma exposição, compondo um mosaico desta mulher em carne viva. Uma carne moída pelas decepções e limitações impostas pela vida. É um espetáculo nada convencional, um poema triste que requer certo empenho na digestão.

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