Crítica: Naty Menstrual conta a vida travesti como um mundo, não submundo

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"Chuva Dourada Sobre Mim" é o título da primeira coletânea de contos de Naty Menstrual —artista, performer e escritora argentina—, publicada no Brasil. Ele evoca uma prática tabu popularmente conhecida como golden shower, e a escolha serve como ponto de partida para o encontro do leitor com descrições que desafiam, encaram e naturalizam práticas sexuais interditas.

Os 24 contos destacam o ponto de vista de personagens do universo "traviarcal" de Buenos Aires, como ela diz. Sissy Lane, Nelly, Angie, Mister Ed, Sandra, entre outras, falam de suas experiências e sensações, demarcando o protagonismo de identidades travestis quase ausentes na literatura contemporânea —ao menos como sujeitos.

São histórias que permitem adentrar o cotidiano das esquinas, esmiuçando as diversas camadas da existência dessa comunidade. Em suas jornadas, elas se autonomeiam e essa atitude tem a ver com o reconhecimento de suas identidades: Sissy "pelo glamour cortesão de Sissi, a Imperatriz", Nelly "por causa da mãe" ou Sandra, nome que nasceu após fugir da família.

Nos contos, elas não estão escondidas na escuridão da noite ou submetidas a um olhar de relance. De saltões, a cada ‘toc-toc’ do sapato no chão, as personagens ganham voz e corpo nos bares, quartos de hotel e cines da capital, permitindo uma ressignificação desses espaços, assim como do olhar estigmatizado sobre eles.

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Elas entram e saem de Audis e BMWs, são abordadas por "bofes" a pé ou de bicicleta, interpeladas por pessoas que se autorizam uma espécie de anonimato.

No livro, no entanto, esse consumidor hipócrita também é nomeado: Aldo, Mauro, Carlos "bonzinho", Mariano "bem convencional", filho de militar e noivo há oito anos, "bofes de uniforme", encanadores, homens "macho-reprodutores" que adoravam "ter um negoção desses bem servido dentro do edi".

Ali não há submundo, mas o mundo de maneira escancarada. Há prazer e consentimento. A presença da oralidade permite um passeio orgânico pela cena noturna portenha. Em "Coração de Mulher", ao som de "Cantando na Chuva" a narradora caminha 30 quadras "só o pó, a racha seca, o grelo que nem isopor" para encontrar um "boy magia".

O acesso a esse universo se relaciona às escolhas feitas pela tradutora Amara Moira que, de maneira perspicaz e em diálogo com Naty Menstrual, traduziu o espanhol "callejero" para o bajubá –língua das travestis brasileiras.

"Amapôs", "eréias" e "ocós" —mulheres, jovens, homens—, são autodenominações que representam o universo simbólico dessa comunidade. São sujeitos desejantes que promovem uma descontinuidade à lógica que associa sexo biológico e gênero, atribuindo uma potência afirmativa a cada uma delas.

No primeiro conto, "26 e Meio", Sissy, diante de uma situação de violência transfóbica, mata o seu algoz. Antes, no entanto, se esfrega e usa a "neca" do homem para si: "É meu! É meu! Todo meu!"

Embora a vida nas ruas e a prostituição apareçam como temas recorrentes, as protagonistas também narram a rejeição familiar, o abuso na infância e outros temas sensíveis, como o uso de fármacos e o HIV.

A respeito deste, há um olhar sensível que não se limita a uma descrição estereotipada do diagnóstico, pois inclui seu impacto no cotidiano e nas crenças de cada uma delas. A terceira parte, intitulada "Camarada Kaposi", se dedica a isso.

Apesar de evocar em grande parte dos contos um padrão de beleza um tanto eurocêntrico, permeado pela figura do príncipe "loiro, branquinho, alto e magro" dos contos de fadas com certa resistência aos corpos gordos e "barrocos", a coletânea transgride o olhar engessado sobre a experiência trans.

Para os olhares enviesados, Marlene Brigitte, fascinada por medialunas de manteiga, assevera: "Era o que era e, se não gostassem, que mudassem de mundo, porque ela ia seguir sendo ela". Talvez seja esse o recado de todas as personagens de "Chuva Dourada Sobre Mim".

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