Crítica: Musical de 'Torto Arado' carece de nuances, apesar de boa montagem

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Há perdas e ganhos evidentes na adaptação do romance de Itamar Vieira Junior para o teatro. Em "Torto Arado: o Musical" a passagem da trama das páginas para os palcos se dá sem sobressaltos. Todos os principais acontecimentos da saga das irmãs Bibiana e Belonísia entram para compor a dramaturgia, assim como os temas que atravessam os episódios dramáticos: racismo, disputa fundiária, escravidão. Mesmo a ideia de transformar em canções certas passagens do livro, o que à primeira vista não é trivial, acaba se dando com naturalidade.

Ambientada no sertão baiano, a história de "Torto Arado" tem uma dose consistente de realismo mágico. As desigualdades do país que não superou seu passado escravista fazem-se presentes de maneira nada sisuda na prosa do autor. Em meio aos desmandos dos poderosos e às agruras dos trabalhadores da terra, emerge um tanto de mistério e encantamento. E é nesse terreno que o musical dirigido por Elísio Lopes Jr. se sai melhor.

Ao longo de 53 capítulos e pouco mais de 250 páginas, o leitor de Itamar Vieira Junior é introduzido a um universo plasmado pela religiosidade. Fazem parte da dinâmica comunitária da fazenda Água Negra, as brincadeiras de jarê, uma derivação do candomblé típica da Chapada Diamantina, e as aparições dos encantados, os espíritos que são incorporados pelo curador Zeca Chapéu Grande. Na encenação, o que é descrito no texto ganha a força das imagens, da dança e especialmente da música.

Com uma longa trajetória como compositor do Bando de Teatro Olodum, Jarbas Bittencourt traz essa bagagem para compor as 14 canções originais do musical. Para algumas, buscou inspiração nas cantigas tradicionais do jarê; em outras, nitidamente amplia o espectro, servindo-se de um conjunto de ritmos afro-brasileiros, que extrapolam os limites da Bahia.

No teatro clássico, especialmente na tragédia, o coro cumpre uma importante função. É dele a prerrogativa de mediar os eventos em cena e o público, contextualizando os acontecimentos ou funcionando como uma voz coletiva da comunidade, expressando seus sentimentos. Em "Torto Arado", essa voz coral se expressa por meio da música, ajudando a preencher as lacunas deixadas pelos diálogos.

O livro inicia-se pelo ponto de vista de Bibiana, que narra o momento em que as irmãs descobrem uma faca na mala da avó e, por acidente, cortam as línguas. Na peça, quem primeiro surge no palco é justamente Donana, já sendo convocada pelos encantados. A cena funciona como uma espécie de prólogo, oferecendo um subtexto mítico para as ações que virão a seguir.

É curioso perceber como as passagens e personagens de caráter menos dramático se saem melhor na montagem. Há gradações na composição do romancista. Em alguns personagens, vale mais sua função dentro da mecânica do enredo do que filigranas de suas personalidades. É o caso de Severo, o primo que se casa com Bibiana. Cabe a ele denunciar as condições de trabalho da fazenda, análogas à escravidão, e reclamar o direito dos trabalhadores quilombolas à terra onde moram. E sua construção, sem muitas nuances, não é um problema, seja para o livro, seja para a peça.

Existe, no entanto, uma complexidade em certas personagens, e especialmente em certas relações, que a montagem não alcança. O vínculo entre as irmãs talvez seja o exemplo mais eloquente dessa situação. A despeito das boas interpretações de Larissa Luz (Bibiana) e Barbara Sut (Belonísia), a relação entre elas não consegue se mostrar mais do que incipiente, linear.

Nesse balanço de altos e baixos, "Torto Arado" consegue se equilibrar ao final. Perde em lirismo e sutilezas, mas cresce ao reforçar o caldo de cultura que estrutura a obra literária. No mais, a escalação do elenco, o cenário –simples, mas muito engenhoso– e a participação dos músicos justificam a boa recepção da plateia. Depois de duas temporadas de sucesso em Salvador, o espetáculo já inicia sua trajetória no Sesc 14 Bis com todas as datas esgotadas e, ao que tudo indica, deve consagrar-se também em São Paulo.

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