No bestiário da internet, destaca-se uma fera particularmente irritante: o "clickbait", link chamativo que atrai o incauto leitor a um texto que não entrega o prometido, visando só alguma monetizável audiência.
"O Dia em que Napoleão Quis Invadir o Brasil" , do historiador e jornalista Marco Morel, cai vítima da prática em seu título.
"Talvez este livro pudesse se intitular 'O Dia em que Napoleão Não Invadiu o Brasil'. Mas o ponto é que ele quis. Teve vontade, e isso faz a diferença", sustenta o autor lá no fim da obra, na página 168. O problema para Morel é que faltam dados e sobram tergiversações para apoiar tal conclusão.
O que é uma pena, pois o livro resulta de uma meticulosa coleção de documentação acerca dos desígnios franceses no teatro do Atlântico Sul na virada para o século 19, trabalho feito em arquivos na França e em Portugal.
Morel alinha 17 episódios em que oficiais ou políticos franceses desenharam planos que vão de bloqueios de rotas a invasões em si, mais ou menos detalhados e exequíveis.
Eles ocorreram entre 1796, três anos antes de Napoleão Bonaparte virar o Primeiro Cônsul da República revolucionária. Para o autor, isso não importa: o que interessa em sua visão é o espírito do tempo, dado que o general já imprimia sua marca em campanhas pela Europa.
A argumentação fica ainda mais frágil na fileira de planos, uns meros rascunhos, outros mais elaborados, que acaba em 1808. Em apenas um deles a autoria é de fato atribuída a Napoleão (1769-1821), e ainda assim trata-se de especulação sobre a dúvida que o já imperador teria tido ao decidir se invadiria Portugal ou atacaria sua principal colônia do outro lado do Atlântico, em 1807.
Como se sabe, a invasão napoleônica da península Ibérica levou à instalação da corte portuguesa no Rio, em 1808, e o resto é literalmente história: o processo de formação do Império do Brasil, em 1822.
Tudo a Ler
Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clássicos e curiosidades literárias
O livro traz contexto e detalhes sobre as discussões da época e, acertadamente, coloca o Império Britânico como foco de qualquer plano que envolvesse o Brasil nas pranchetas francesas. Londres era a verdadeira metrópole rival de Paris em termos geopolíticos.
O interesse francês no Brasil em si não era inédito: o país tomou por um tempo o Rio e o Maranhão. Nos tempos de Napoleão, contudo, o grande jogo dos mares era maior do que o eventual delírio de ocupar uma área que iria do Rio Grande do Sul ao Mato Grosso (plano de 1803).
Diluirá para certo leitorado o interesse no inventário levantado por Morel no aspecto formal. Discípulo da prosa solta do francês Max Gallo (1932-2017), o brasileiro acaba por inundar seu texto com diversionismos estilísticos, um sem-número de clichês esquerdistas e até citações a Chico Buarque.
O anti-imperialismo do livro é quase anedótico. O almirante Jean-Baptiste Raymond de Lacrosse (1760-1829), que bolou três dos planos citados por Morel, é descrito como "um colonizador feroz, desses que ingeriam carne vermelha malpassada", deixando o leitor imaginar que uma classe vegana de invasores talvez fosse mais aceitável.
Morel não busca uma tese acadêmica, mas a tentativa de pintar um quadro cultural à moda de um Modris Eksteins ("A Sagração da Primavera") ou de um Orlando Figes ("A Dança de Natasha"), acaba tisnada por uma certa grandiosidade vazia das divagações apresentadas.
Ao fim, ainda que algo malpassado, o livro não entrega o antecipado, mas traz elementos curiosos que dariam uma bela ficção de história alternativa.