"Um Ditador na Linha" é o último livro publicado em vida pelo maior escritor da Albânia, Ismail Kadaré, e acaba de ser lançado no Brasil com tradução direto do albanês, assinada por Bernardo Joffily. Kadaré é mais conhecido no Brasil por "Abril Despedaçado", livro que ganhou adaptação para o cinema em 2001, com direção de Walter Salles.
Em "Um Ditador na Linha", Kadaré examina um episódio histórico ocorrido em 23 de junho de 1934: uma ligação de pouco mais de três minutos, feita por ninguém menos que Josef Stálin ao poeta russo Boris Pasternak.
Pouco antes de a ligação ter sido feita, o líder russo havia acabado de prender e enviar ao exílio o poeta Óssip Mandelstam, que zombou do ditador em um poema satírico ao chamá-lo de "o montanhês do Krêmlin".
Na ligação, Stálin perguntou a Pasternak sua opinião a respeito do poeta e da prisão. Se esses são fatos mais ou menos pacíficos, há muitas interpretações sobre o que se sucedeu à pergunta.
Há quem diga que Pasternak tirou o corpo fora e se dissociou de Mandelstam, ao que teve, no mesmo fôlego, sua covardia ridicularizada pelo ditador. Há ainda depoimentos que sustentam que Pasternak bateu de frente com Stálin e ousou pedir a liberdade do colega. As fontes variam dos arquivos da KGB até um relato do filósofo Isaiah Berlin.
Kadaré analisa 13 versões do telefonema. Como Akira Kurosawa em "Rashomon", o autor rotaciona sua "câmera" e demonstra que tudo é perspectiva. Importa menos o que ocorreu de fato e muito mais o emprego dos recursos interpretativos do autor.
À moda de um bom historiador, Kadaré sabe que nenhuma fonte tem valor intrínseco. Você é quem a interroga —o que ela vai lhe dizer dependerá sempre da sua pergunta.
O que a obra sugere é que há algo em comum entre a figura de um tirano e a de um escritor. A fonte de legitimidade de um tirano emana da sua capacidade de construir uma narrativa, uma história coerente, a respeito de si próprio.
Stálin costumava citar o precedente estabelecido por William Shakespeare em "Ricardo 3º", a peça em que "um rei como tantos outros" foi transformado num monstro —e esse retrato se tornou o mais cristalizado sobre esta figura histórica. O poeta será sempre um regicida em potencial.
Escrevendo sobre Pasternak, Kadaré fala sobre si. Como o poeta russo, ele mesmo já recebeu uma ligação de um ditador comunista —Enver Hoxha, o autocrata stalinista de sua Albânia natal, que permaneceu no poder do início da década de 1940 até meados dos anos 1980, quando morreu.
Em entrevista à revista The Paris Review, Kadaré afirmou: "De 1967 a 1970, eu estava sob a vigilância direta do próprio ditador. Numa situação como essa, havia apenas três escolhas: permanecer absolutamente inflexível com as minhas próprias crenças, o que significava a morte; optar pelo silêncio completo, o que significava outro tipo de morte; ou pagar um tributo, alguma espécie de suborno. Optei pela terceira solução e segui escrevendo".
"Um Ditador na Linha" é um híbrido de ensaísmo e ficção histórica especulativa. Lida com um episódio menor ocorrido na década de 1930, mas, à moda das grandes obras de arte, aborda temas atemporais: sobretudo o status da Verdade, com "V" maiúsculo, na preservação das liberdades individuais e da vida na cidade.
Foi o escritor britânico G.K. Chesterton quem uma vez escreveu que "contos de fada não dizem às crianças que dragões existem". "Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser derrotados."
De modo análogo, "Um Ditador na Linha" indica que, se as poesias são contos de fada, os tiranos devem ser tratados como os dragões.
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