Crítica: Deborah Levy explora frustração de pianista genial em 'Agosto Azul'

há 3 meses 11

Na chamada "Autobiografia Viva", série que inclui "Coisas que Não Quero Saber", "O Custo de Vida" e "Bens Imobiliários", Deborah Levy inova ao contar suas memórias nas três obras que a catapultaram para o sucesso. Depois desse retrato tão íntimo, haveria algo mais para a autora sul-africana publicar? Houve.

"Agosto Azul" foi escrito depois da pandemia e se vale de situações enfrentadas ao redor do mundo durante o período para discorrer sobre Elsa M. Anderson, de criança prodígio a pianista famosa. Quando a narrativa se inicia, a protagonista tem 34 anos e se vale da lembrança de sinfonias clássicas para rememorar momentos marcantes da sua vida.

Elsa conta que suas mãos estão seguradas por um valor milionário e que foi adotada ainda criança pelo célebre maestro Arthur Goldstein, que a tornou uma celebridade. Pensa muito na sua mãe biológica, chega a fantasiar encontros com ela. Não tem muito sucesso nos relacionamentos amorosos. Mora em Londres, lá tem amigos fiéis.

A trama se desenvolve conforme acompanhamos Elsa em suas viagens pela Europa a fim de digerir o retumbante fiasco de sua última apresentação em Viena, na familiar sensação de fracasso diante de um mundo que cobra excelência diária, mas não dá condições para isso.

Dividido em blocos de capítulos nomeados com um local e um mês, "Agosto Azul" começa na Grécia, em setembro, com um roubo. A narradora confessa que, ao se sentir lesada em uma transação comercial, resolve roubar um chapéu de feltro. Quase um elas-por-elas. E é aqui que o livro se torna instigante e nos seduz a acompanhar as viagens de Elsa com certa voracidade.

A partir desse episódio, a personagem resolve ter um duplo. "Ouvia sua voz feito música, feito um estado de espírito, ou às vezes feito uma combinação dos dois acordes. Ela me assustava. Sabia mais coisas do que eu. Fazia com que me sentisse menos sozinha."

Elsa conversa mentalmente com a dona do chapéu de feltro e chega a crer que a vê em suas viagens. Essa é a grande sacada narrativa de Levy. Ao anunciar que decidiu ter um duplo, Elsa apresenta argumentos que permitem afirmar que a história é toda construída por relações desse tipo. Ou seja, todas as personagens só existem (e fazem sentido) porque estão em relação a um outro.

Elsa é duplo de Ann, quando se lembra de seu nome na vida pré-adoção; do pai, que a fez sumidade do piano enquanto se construía como pai; de suas amigas e amigos, no apoio que dão uns aos outros na sobrevivência à pandemia; do piano, real extensão de seu corpo; de Deborah, a autora, já que elas se constroem uma à outra no ritmo da narrativa e na musicalidade das palavras. E dos leitores —que anseiam para que ocorra logo o confronto entre esses duplos explicitamente anunciados.

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Sua mãe biológica entrará em cena para além dos seus sonhos? Irá Elsa ler os documentos que contam as suas origens? Conseguirá superar a crise e tocar prodigiosamente de novo? Será possível desenvolver um relacionamento amoroso bem-sucedido?

E sobre seu duplo, Elsa conseguirá ver seu rosto sem a máscara? Elas realmente são tão parecidas quanto a pianista acredita? Se sim, seriam elas separadas no nascimento? A moça do chapéu irá reivindicar o que lhe foi roubado? Algo foi mesmo roubado?

Essa moça existe, é real ou é só um delírio de Elsa que, para lidar com o vexame e a vergonha, passa a "cheirar e falar como ela"?

Pouquíssimas dessas perguntas são respondidas. É desanimador, portanto, chegar ao desfecho do livro, uma vez que nos sentimos quase como Elsa no concerto fatídico: ensaiamos —lemos— quase à exaustão e, no momento da conclusão, o trabalho não é recompensado. Onde estão os aplausos, a comoção, a sensação de dever cumprido?

Mas talvez a vida e a literatura sejam assim mesmo. As conversas imaginadas, as situações fantasiosas, as narrativas fabuladas tendem a ser mais sedutoras do que aquelas que se desenvolvem na "vida real".

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