Crítica: Buchi Emecheta narra como 'se gestou autora' entre a escrita e os filhos

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"Quem vai se interessar em ler sobre uma mulher negra infeliz cuja vida parece ser uma grande confusão?"

Ironicamente, é isso que pergunta Buchi Emecheta, reconhecida e profícua escritora nigeriana, ao escrever "Cabeça Fora d'Água", livro de memórias em que empreende um gesto de autodefinição, tão caro às mulheres negras ao redor do globo, como propõe Patrícia Hill Collins.

O texto, originalmente publicado em 1986, é uma engenhosa cartografia afetiva em que, no primeiro momento, acompanhamos os deslocamentos na infância da narradora, as idas e vindas de sua capital natal, Lagos, até Ibuza, território de pertença de seus familiares mais velhos. São postos em cena os conflitos orquestrados pela colonização e as consequências da presença britânica na Nigéria.

A autora então nos conduz a Londres, cidade para onde migra com sua família na condição de "refugiada econômica", em 1962, depois de ter se inserido no âmbito letrado da cultura ocidental ao estudar numa escola metodista.

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Os cenários são acuradamente descritos a partir das comunidades negras em diáspora, dando a ver a maturada perspectiva sociológica da narradora e sua percepção sensível dos processos subjetivos de indivíduos negros, inclusive ela, que sobrevivem num lugar em que "as pessoas choram com o coração, e não com os olhos".

Na elaboração de uma imagem de si, Emecheta recorre a registros de diários que escreveu ao longo das décadas de 1960 e 1970 e constrói uma narrativa que encontra na dicção de mãe-escritora uma forma privilegiada de expressão. Iluminando um dos sentidos possíveis do título da obra, ela escreve "manter a minha cabeça fora d'água nesta sociedade indiferente é um milagre".

Afinal, o tempo da escrita de Emecheta é o tempo pautado pela maternagem de seus cinco filhos. Ela escreve enquanto os filhos dormem ou estão na escola, escreve para elaborar o medo de que algo falte a eles ou para sonhar uma melhor habitação para eles, lembrando a escrita de Carolina Maria de Jesus.

São muitas as analogias estabelecidas na obra entre o ato de escrever e o de "maternar", que ainda se configuram como interdições impostas às mulheres negras.

A narrativa é transgressora ao inscrever a experiência dessa mãe africana que se enuncia, sem se idealizar, como uma pessoa que traçou e efetivou um projeto literário se recusando a abrir mão do princípio de criar dignamente seus filhos.

A profissionalização de Emecheta como escritora é narrada em pormenores, como o episódio violento de ter o original de seu primeiro romance queimado pelo marido, descrevendo em seguida a complexa escrita e recepção de ao menos cinco dos muitos livros que antecederam a publicação dessas memórias.

Além disso, a dicção da mãe-escritora faz ressoar a oralidade que remete a sua tia-avó, Nwakwaluzo Ogbueyin, contadora de histórias que Emecheta evoca reiteradamente no trabalho de invenção.

A atuação das outras mulheres de sua linhagem também comparece no relato como vetor de força que encoraja Emecheta em direção ao cerne de seu fazer artístico —a saber, a ruptura dos infelizes papéis que são reservados às mulheres negras tanto pela tradição igbo-cristã quanto pela lógica perversa e racista do colonialismo.

Sublinhando a vinculação entre vida e escrita, o campo do autobiográfico é suporte para a autoanálise do percurso literário de Emecheta, o que envolve não apenas a denúncia das barreiras para conseguir publicar seus livros, mas também uma explicitação das escolhas estéticas que norteiam sua produção.

"Cabeça Fora d’Água" é, portanto, um livro que conta como uma autora se gestou e como uma obra extensa foi por ela gestada e parida, convidando a uma instigante reflexão sobre gênese literária e seus constrangimentos e potencialidades em face à experiência de mulheres negras em diáspora.

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