Crítica: Bom horror, 'Oddity' narra melodrama gótico com folclore irlandês

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Volta e meia surge um filme de gênero que se assemelha a algum conto literário dentro de uma coletânea cheia de histórias melhores e outras piores. E aí esse conto fica no meio-termo, suficientemente bom para te segurar no livro e insuficientemente ruim para te fazer abandonar. "Oddity – Objetos Obscuros" está nessa linha para o horror em 2024, ano até o momento mais estimulante e cheio de grandes trabalhos se comparado a 2023.

O segundo longa-metragem do irlandês Damian Mc Carthy tem a estruturação da pura eficiência narrativa e simbólica. Lida com códigos facilmente apreensíveis, ao mesmo tempo em que trafega pelo folclore local. Sendo particular e universal, "Oddity" serve tanto de história de medo e insólito para todo espectador quanto um contato tênue, porém intenso, com a mística de determinadas crenças e paisagens da Irlanda. Algo próximo foi feito por Ishana Night Shyamalan em outro bom exercício fantástico desse ano, "Os Observadores", também sobre místicas irlandesas e filmado em florestas do país europeu.

Em "Oddity", o enredo se inicia a partir de uma mulher que acaba de se mudar para a casa de campo onde vai morar com o marido psiquiatra. Certa noite, ela é atacada por um dos pacientes do esposo, ou assim outras pessoas supõem até meses depois. A partir desse acontecimento e da entrada de mais personagens, entre eles a irmã gêmea e mediúnica da mulher, a premissa se desenvolve entre idas e vindas no tempo, de forma a desfiar uma teia de mistérios, intrigas e traições que dão ao filme elementos típicos de melodrama gótico.

Mc Carthy apresenta uma história de assombração enquanto desfia várias surpresas e mescla o sobrenatural mantendo o drama familiar em primeiro plano. "Oddity", então, não é necessariamente uma trama de fantasmas ou de protagonistas a enfrentar algum tipo específico de ameaça externa. O mecanismo aqui, que retira o filme da mediocridade junto ao esmero de Mc Carthy na elaboração de belas imagens e da precisão sonora, é inserir o fantasioso dentro do melodrama, fazendo com que o mais típico perigo num horror tradicional seja, na prática, o contrário.

Claro que "Oddity – Objetos Obscuros" ainda é um filme de horror e tem pleno orgulho disso. Mc Carthy não faz do gênero uma "commodity" só para entrar na modinha, o que é muito bom para que a atmosfera de desassossego se mantenha literalmente até o último segundo. Parte do impacto está no papel duplo desempenhado por Carolyn Bracken, que interpreta as gêmeas Dani e Darcy Odello em chaves e visuais tão distintos que por vezes o espectador se desliga de que é a mesma atriz. Tanto as expressões de inquietação e pânico de Dani quanto os olhares ambivalentes e cheios de intenções ocultas de Darcy são alguns dos componentes mais poderosos em cena.

Outro recurso de temor em "Oddity" é o esquisito manequim de madeira levado por Darcy para dentro da casa de campo. A figura de visual grotesco e com semblante singular, num grande trabalho de direção de arte assinado por Paul McDonnell, guarda boa parte dos enigmas. O boneco é uma fantasmagoria essencial em "Oddity", mesmo apenas colocado à mesa com boca e braços abertos e aparecendo vez ou outra. Esse ser artificial de traços infamiliares acumula alguns tantos referenciais do diretor, desde seu assumido interesse pela figura do golem, vinda do folclore judaico, até a ideia de artefatos inanimados em formato humano a causar tormentos a partir de rituais impelidos por terceiros.

São muitas coisas para um filme de pouco mais de 90 minutos, e Damian Mc Carthy sabe equilibrar os elementos e fazê-los encontrar os devidos caminhos até o clímax, mais sombrio que a média de produções similares. Por ironia, e aqui vai um possível e leve spoiler a alguns espectadores, os desdobramentos de "Oddity" guardam diversas similaridades com o recém-estreado "Golpe de Sorte em Paris", de Woody Allen. Ambos lidam com a perversidade em viés possessivo e econômico, um tratando na chave da comédia moral de costumes e o outro pela fabulação do amedrontamento.

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