O experimento é antigo. Num grupo, uma pessoa conta um fato ao vizinho que o repassa a outros ao redor. Tempos depois, tenta-se recuperar a informação original. Ficam evidentes distorções. No caminho, dados foram acrescentados, percepções incorporadas, pontos de vista descontextualizados em prol de narrativas que comprometem reputações.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os médicos brasileiros, de forma geral, conhecem bem esse enredo. Nos últimos tempos, tem sido recorrente, nas redes sociais e artigos opinativos, entendimentos enviesados atribuindo à autarquia e à classe que representa uma posição de antagonista-mor da sociedade.
Com argumentação pretensamente elaborada, insiste-se em reduzir o espaço legítimo do CFM, enquanto instituição pública, e apresentar a falsa ideia de que a classe médica está atrelada a plataformas político-ideológicas e sem compromisso com pacientes e a população. Evidentemente, isso não é verdade, mas a repetição se esforça para dar fôlego a essa falácia.
Nesse processo, recentes trincheiras evocam novamente a pandemia de Covid-19, atribuindo ao CFM fatos distantes da verdade. Sobre isso, há esclarecimentos a serem feitos.
É preciso ressaltar, por exemplo, que o parecer 04/20, publicado no início da emergência epidemiológica, atendeu um objetivo principal: explicitar a competência do médico para prescrição "off-label" de medicamentos em contextos deste tipo, prerrogativa que sempre existiu para qualquer condição clínica, desde que exercida de forma ética e responsável, atenta aos limites da lei.
Sublinhe-se ainda que essa norma não foi feita em função de pleitos de qualquer natureza, pois o CFM é uma autarquia do Estado e, como tal, tem a missão de defesa dos interesses coletivos, tendo no médico —o único treinado para antecipar eventos adversos possíveis— o agente da prescrição de um medicamento "off-label".
Conforme a Anvisa, esse tipo de prescrição prevê o uso intencional em situações divergentes da bula de medicamento registrado com finalidade terapêutica. Configura prática consagrada pela ciência e medicina, não ocorrendo por ignorância ou arrogância do médico, mas por necessidade de tratamento de pacientes reais para quem não há medicamentos testados, segundo o rito científico existente.
Assim, a prescrição "off-label", quando necessária, é prerrogativa do médico, a partir de sua autonomia, sendo garantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconhece esse direito e garante que o medicamento prescrito seja coberto por planos de saúde e pelo SUS.
Ainda no combo das narrativas mirabolantes, detratores alardeiam ser o CFM apoiador de movimentos antivacina, inclusive de Covid-19. Isso é estapafúrdio para quem conhece o histórico do conselho em apoio ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e seu empenho em estimular a população a tomar doses de todos os tipos.
Prova disso são parcerias firmadas pelo CFM com órgãos, como o Ministério da Saúde e o Ministério Público, para participar do esforço de ampliação da taxa de cobertura vacinal no país. Elas se somam a campanhas institucionais da autarquia com esse fim voltadas a pacientes e profissionais e documentos produzidos pelo conselho que ajudaram a monitorar o avanço das pesquisas relacionadas à imunização contra Covid.
Para completar as tramas conspiratórias, cita-se o CFM como um dos responsáveis e apoiador do PL 1.904/2024, que proíbe o aborto a partir de 22 semanas, e contrário ao Programa Aborto Legal. São afirmações também infundadas que causam confusão, assim como atribuir ao CFM posição contrária à autonomia da mulher, o que foi feito pela retirada dessa expressão do contexto onde foi usada.
Ao longo de sete décadas, o CFM sempre tem estado ao lado da ética e da população. Apura abusos e pune, como instância recursal, transgressores de normas que colocam em risco seus pacientes. Elabora diretrizes assistenciais com base nas melhores evidências científicas e defende um atendimento eficaz, seguro e de qualidade no país.
Quem duvida pode confirmar tudo isso numa simples busca na internet, onde abundam documentos que atestam o cuidado do CFM em aplicar o conhecimento científico em favor da medicina e da saúde, observando ainda princípios da bioética e da ética médica.
Lembrem-se: a ciência é humilde, paciente e criteriosa. Ela sabe quanto ainda falta aprender e reconhece a complexidade do mundo. Quem a defende foge das narrativas baseadas em distorções, pois sabe que, se o fizer, deixa de ser cientista de fato e passa agir como caricatura de si mesmo, mais preocupado com holofotes do que com a verdade.