Quando estreou, há pouco mais de três anos, "Round 6" não parecia ter a pretensão de se tornar um fenômeno global capaz de rivalizar com superproduções anglófonas como "Stranger Things" ou "Succession". Mas sua fantasia enraizada na cultura sul-coreana não encontrou resistência mundo afora.
Na semana que vem, em plena ressaca de Natal, a série volta para uma nova temporada revigorada e mais entrelaçada à política local do que nunca. Primeiro, porque sua popularidade é a prova de que as estratégias de "soft power" do governo vêm rendendo frutos.
Segundo, porque os novos episódios parecem refletir o caos que tomou o país de assalto desde que o ex-presidente Yoon Suk Yeol encampou uma tentativa de autogolpe que resultou em impeachment. O protagonista de "Round 6", afinal, agora tem como objetivo derrubar um líder autoritário.
Coincidência ou futurologia, a reestreia acontece depois que a série tirou prêmios Emmy de produções caras e prestigiosas como o já citado drama familiar da HBO, que perdeu os troféus de melhor direção e ator, pela primeira vez embolsados por asiáticos.
Em termos de audiência, "Round 6" teve 330 milhões de espectadores e 2,8 bilhões de horas vistas, de acordo com a Netflix, pouco afeita a divulgar dados do tipo –ou nem tanto quando a transparência é motivo de festa. Esses números fazem dela a obra original mais popular da plataforma.
"Isso é prova de que o idioma não é uma barreira, que o inglês pouco importa quando estamos entretidos com uma história", disse o diretor e criador Hwang Dong-hyuk em dezembro passado, em Seul, num intervalo entre as gravações de uma segunda temporada que nem estava em seus planos iniciais.
Tempos atrás, Dong-hyuk chegou a dizer que o trabalho na primeira temporada foi tão estressante que ele perdeu alguns dentes e não voltaria a escrever e dirigir novos episódios. Mas ele não conseguiu abandonar a cria e, ao receber a reportagem, caminhava alegre pelos cenários coloridos de seu set de filmagem, com maior liberdade artística e um cachê mais generoso.
Cercado por centenas de camas, que formavam o dormitório onde os personagens de "Round 6" descansam e firmam alianças, Dong-hyuk se sentou para conversar com jornalistas de todas as partes do mundo que voaram até a Coreia do Sul para assistir às filmagens, num set tão hiperbólico quanto as intenções renovadas da série.
"Minha linha de raciocínio é a mesma da primeira temporada, quando quis criar uma história em que confiava e que divertisse as pessoas. Agora há mais pressão, por causa da expectativa e porque minha mente já está cansada, mas o jeito é transformar isso em combustível", afirmou o diretor a este jornal.
Ele é modesto ao falar do impacto da série numa indústria pautada por histórias e talentos vindos do eixo Estados Unidos-Europa e diz que "Round 6" só alcançou fama mundial porque outras séries em língua não inglesa o fizeram antes.
Fenômenos como o espanhol "La Casa de Papel" e o alemão "Dark", também da Netflix, dão lastro ao discurso, mas se apequenam diante da popularidade e dos prêmios inéditos conquistados pela série sul-coreana, o que Dong-hyuk atribui à universalidade de seus temas.
Em sua primeira temporada, "Round 6" –ou "Squid Game", no título original– narrou a história de Seong Gi-hun, um sul-coreano afundado em dívidas que, num momento de desespero, aceita participar de uma competição baseada em jogos infantis. A cada rodada, os vencedores avançam para a próxima fase, enquanto os perdedores são mortos.
Tudo bancado por um grupo de ricaços que se divertem às custas do sofrimento de homens e mulheres que precisam do prêmio em dinheiro para pagar por cirurgias, empréstimos, estudos e por aí vai. Nos novos episódios, Seong percebe que, para interromper aqueles jogos olímpicos do sadismo, precisa participar da competição novamente, a fim de desmascarar seu organizador.
"Qualquer um podia se relacionar com os temas da primeira temporada, então não foi difícil passá-los ao público por meio do meu personagem. Minha tarefa, enquanto ator, era encontrar o ponto certo entre divertir e espalhar uma mensagem", diz Lee Jung-jae, que venceu o Emmy por interpretar o protagonista.
"Round 6" é, ao mesmo tempo, muito coreana e muito universal, diz seu diretor. Ele costurou a trama de ação e suspense a problemas sociais graves não só em seu país, mas num mundo abatido por taxas de desemprego crescentes, desigualdade social galopante e discursos populistas vazios.
A série lembra "Parasita", filme de Bong Joon-ho que fez história ao vencer a Palma de Ouro em Cannes e, depois, ser o primeiro longa em língua não inglesa a embolsar o Oscar, há quatro anos. O drama familiar também usava as particularidades e excentricidades da produção audiovisual local para denunciar o abismo social que opõe pobres e ricos no país.
Os pontos de contato entre série e filme vão além. Ambos se inserem numa estratégia de "soft power" adotada pela Coreia do Sul especialmente a partir dos anos 1990, quando o governo percebeu que o blockbuster americano "Jurassic Park" fez mais dinheiro do que a montadora sul-coreana Hyundai em 1993.
Assim, o país passou a investir massivamente no audiovisual e em outras áreas da cultura, fazendo florescer a onda "k" que tomou de assalto países como o Brasil, hoje com legiões de fãs dos k-dramas, do k-pop e até de k-food –as novelas, a música e a gastronomia do país.
"Várias formas de incentivo público tiveram uma influência positiva na indústria. Foi igualmente crucial o apoio do governo para que as nossas histórias fossem exportadas", disse Don Kang, vice-presidente de conteúdo da Netflix na Coreia do Sul, a este jornal no começo do ano.
Ao adentrar o enorme complexo de estúdios de Daejeon, erguido pelo poder público e onde a segunda temporada foi gravada, fica claro quão ambiciosos são tanto os planos da Netflix quanto os da Coreia do Sul para séries como "Round 6" e tantas outras que chegam no catálogo da plataforma aos montes.
Para coroar o retorno da série, a festa de lançamento em Seul, na semana passada, foi marcada pelo tom político acalorado, que teve o ex-presidente Yoon Suk Yeol como alvo.
As entrevistas da equipe de "Round 6" a este jornal foram feitas meses antes de o país mergulhar no turbilhão político. No evento da Netflix, porém, Dong-hyuk foi firme ao dizer que o momento do lançamento dos novos episódios, mais sombrios em suas críticas sociais, era obra do destino.
"Nós precisamos tomar as ruas. Seja por impeachment, seja por renúncia, a pessoa responsável por declarar lei marcial neste país precisa ser responsabilizada. Espero que possamos voltar à estabilidade e que os coreanos possam aproveitar o fim de ano da forma como merecem", afirmou na ocasião, destacando que os novos roteiros são uma resposta a uma era de guerras, revoltas e divisões no mundo.
Por mais fantasiosos que sejam seus cenários, por mais afetadas que sejam suas atuações e por mais saturada que seja sua fotografia, "Round 6" quer construir uma ponte bastante sólida com a realidade fora das telas, mirando uma terceira temporada já confirmada pela Netflix.
O repórter viajou a convite da Netflix