Como o Spotify, há dez anos no Brasil, transformou todo o mercado da música

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Quando o Spotify chegou ao Brasil, há uma década, para escutar música era necessário comprar um disco ou faixa no iTunes, usar o YouTube ou apelar a meios analógicos, como o rádio, CDs, fitas cassete ou vinis. A isso se somava a pirataria, que desde os anos 1990 promoveu uma revolução na música, da mídia física à digital, e quase quebrou a indústria fonográfica.

Dez anos depois, o Spotify não matou a pirataria, mas a transformou numa prática de nicho e tornou a música novamente em negócio lucrativo. Nesse processo, mudou ainda a maneira como acessamos e consumimos essas obras e colecionou protestos de artistas a respeito da remuneração por seu trabalho.

O Spotify mudou o comércio —por aluguel, e não mais compra das obras— e a quantificação do sucesso —por plays, e não mais por venda de álbum ou single. Fez das playlists as novas rádios e dos engenheiros de algoritmo os novos programadores. Também devolveu o domínio desse mercado às grandes gravadoras, que hoje são as maiores acionistas da plataforma de streaming de áudio mais popular no Brasil e no mundo.

"Qualquer um pode fazer uma música e pôr no streaming, mas os lugares onde o público fica sabendo sobre essa música são dominados ou altamente influenciados pelas gravadoras", diz Glenn McDonald, ex-designer de algoritmo do Spotify e autor do livro "You Have Not Yet Heard Your Favourite Song", ou você ainda não ouviu sua canção favorita.

No livro, lançado neste ano pela editora Canbury e ainda sem tradução, McDonald conta suas experiências trabalhando como engenheiro de software e guru dos dados e estatísticas do serviço, de origem sueca. Ele não revela segredos do Spotify, mas reflete sobre as mudanças que o streaming provocou nesse mercado e explica a evolução e o funcionamento de algoritmos da plataforma.

É melhor ouvir e fazer música atualmente, com o Spotify, do que era antes, defende McDonald. É algo que Felipe Vassão, produtor vencedor de Grammy Latino, que já trabalhou com Emicida e Chitãozinho & Xororó, concorda. "Com certeza é melhor viver hoje, mesmo no mundo ferrado que a gente tem, do que na Europa antiga no meio das pragas", diz.

Mas Vassão acrescenta que "o que era para ser uma ferramenta para democratizar e recompensar mais o nosso trabalho virou mais uma caixa preta". "Esse modelo abriu espaço para mais gente, mas não criou um ambiente sustentável para todo mundo, e o que me deixa frustrado é que os caras estão ganhando muito dinheiro. Ele só não está chegando a nós como deveria."

Há mais dinheiro sendo feito com música gravada em relação a dez anos atrás. A indústria fonográfica cresce de maneira constante no Brasil e no exterior. No ano passado, o streaming representou 99,2% do faturamento desse mercado, que no Brasil dobrou de tamanho no período de três anos. Isso inclui o dinheiro dos assinantes das plataformas e também o que é gerado pela publicidade veiculada nas versões gratuitas do serviço.

Essa renda, no entanto, fica concentrada numa elite. Em seu livro, McDonald mostra que, no ano passado, 95% de todos os royalties foram distribuídos entre os 200 mil nomes mais ouvidos do Spotify no mundo, sendo que cada dos artistas que ocupa as 40 primeiras posições no ranking ganhou pelo menos US$ 10 milhões. No total, porém, a plataforma tem cerca de 10 milhões de artistas.

Em relação à participação de nomes independentes —incluindo gente que se desvencilhou de uma grande gravadora, caso do Radiohead, e de selos com alta relevância local— , há uma aparente melhora. Cerca de 20% a 25% dos 1.000 artistas mais ouvidos do Spotify, diz McDonald, não são de uma grande gravadora.

Em termos históricos, o autor pondera, este não é um número ruim. É impossível comparar o cenário de agora com a época dos CDs ou LPs, mas é improvável que mais artistas independentes estivessem entre os mais ouvidos em nível global, ele diz. Quando o consumo de música era estritamente físico, as gravadoras tinham monopólio não só da produção, mas da fabricação e distribuição das gravações.

O funil ficou menos estreito, diz McDonald, ainda que os tubarões desse mercado tenham voltado a reinar. "As gravadoras não precisam pagar para manipular playlists. Elas são resultado de popularidade e daquilo que as pessoas já conhecem. É a música deles que está nos filmes e nos anúncios, então eles já pagaram antes. Não precisam pagar depois."

Se por um lado é mais fácil para um artista produzir e distribuir música por conta própria, por outro isso não significa que ele consiga viver dessa produção. Para ganhar dinheiro no streaming, é necessário multiplicar o número de plays, e a principal ferramenta para isso são as playlists, a maior vitrine dos fonogramas no Spotify, que são dominadas por algoritmos —portanto, por quem cria essas estruturas.

Quando foi criado, conta McDonald, o Spotify usava um conjunto mais simples de métricas. Cruzava, por exemplo, os dados dos ouvintes de um artista para determinar que outro músico aqueles fãs também poderiam gostar, com base no seu histórico de audição.

Com o desenvolvimento do "machine learning" —que dá aos computadores a capacidade de aprender sem serem programados—, a matemática para tentar adivinhar o que um usuário quer ouvir se tornou mais complexa. Entre outras variantes, ela leva em conta atributos subjetivos, como o quão "dançável" ou acústica é uma música, além de sua popularidade e dos dados de comportamento dos usuários.

Há características que privilegiam indiscriminadamente determinadas faixas —as mais curtas, por exemplo—, mas as recomendações e playlists do Spotify dependem do cruzamento de tantos dados que, em muitos casos, elas se tornam uma abstração.

Isso é algo que Felipe Vassão notou. Ele compara o Spotify a um cassino, em um vídeo viral que compartilhou no Instagram. "Se o algoritmo te ajudar, sua música dá uma rodada e você ganha um troco. Se der azar, se fodeu", diz. "E, em qualquer cassino, a casa nunca perde. O Spotify está sempre ganhando dinheiro. Cobra para entregar a música aos ouvintes pagantes. Não importa o que você lança, mas o quanto você lança. Tem que estar sempre jogando na roleta."

Em outras palavras, ele acrescenta, a plataforma cria artistas com sucesso artificial, que têm milhões de reproduções, mas não são capazes de reunir 500 pessoas numa casa de shows.

O Spotify contabiliza uma reprodução quando uma música é tocada por pelo menos 30 segundos, mas não leva em conta sua duração. Uma faixa longa naturalmente vai ser menos tocada, mas a quantidade de horas que o autor dessa música conquistou no serviço talvez seja o mesmo daquele que, com uma gravação curta, conseguiu mais reproduções. Mas, na plataforma, essa música mais curta vai ter mais chance de entrar numa playlist e, assim, fazer ainda mais sucesso.

McDonald diz acreditar que, como o Spotify está inserido num mercado de atenção, a contagem por tempo, em vez de plays, seria mais justa. Também premiaria uma audição atenciosa —alguém que dedicou horas a uma obra— em detrimento daquela mais passiva. Ele compara esse cenário dizendo que o primeiro caso poderia, no passado, representar o ouvinte que gastou para comprar um disco, enquanto o segundo seria o ouvinte casual de rádio.

Ainda assim, essa mudança não transformaria a vida dos artistas. É algo que também não aconteceria, diz McDonald, nem com a adoção dos modelos centrados no usuário —em que o dinheiro de um assinante vai somente para os músicos que ele ouviu— ou no artista —que aumenta o pagamento a quem tem mais de 500 ouvintes e 1.000 reproduções mensais, e diminui o dos plays vindos de indicação dos algoritmos.

O designer de algoritmos defende o modelo atual de pagamento, o "pro-rata". Nele, todo o dinheiro arrecadado pelo Spotify, descontado os direitos autorais e a fatia que fica para a empresa, é dividido aos artistas com base no número de plays de suas faixas.

Nesse cálculo, ele diz, quem ouve mais músicas do que a média das pessoas tem maior poder sobre a movimentação do dinheiro. Nas suas contas, parte da remuneração que iria para um gigante como Taylor Swift acaba sendo redistribuído entre as escolhas desses "super-ouvintes".

No modelo centrado no usuário, quem ouve mais música dividiria seu dinheiro em fatias menores, ainda que pudesse escolher para quem ele iria. É algo que, embora seja mais admirável em termos morais, beneficiaria mais as estrelas, afirma McDonald.

O problema do "pro-rata" é que os artistas disputam os royalties com o chamado ruído branco —como são chamadas faixas com o barulho de chuva para dormir— e com os selos de artistas fantasmas, que lançam versões em jazz de clássicos do rock e do pop e acumulam milhões de plays tocando o dia todo em cafeterias, lojas de roupa ou playlists "para relaxar".

Os músicos que atuam nessas faixas geralmente ganham por sessão de estúdio, mas não os royalties pelo desempenho das obras no streaming, que ficam com a empresa que os contratou.

Dessa forma, se para o ouvinte ficou mais cômodo ouvir música, para a maioria dos artistas a competição por remuneração ficou mais acirrada. McDonald defende que o Spotify não é pior do que a indústria da mídia física e ainda trouxe melhorias —há mais música sendo ouvida por mais gente, mais artistas independentes fazem sucesso e o acesso às obras é mais fácil e democrático.

Para Vassão, essa visão é baseada numa crença comum entre pessoas do Vale do Silício de que a tecnologia vai resolver todos os problemas da humanidade. Ele diz que as gravadoras, com os adiantamentos e investimentos nas carreiras dos artistas, pelo menos servem como um banco que não cobra juros no empréstimo, o que viabiliza a produção das obras.

Já o Spotify, ele diz, não faz quase nada. "Eles não gastam nenhum dinheiro com a feitura da música, só distribuem. O criador da plataforma, Daniel Ek, diz que a música deveria ser de graça. Se é assim, por que ele está lucrando centenas de milhões de dólares? O que era para ser uma ferramenta que iria ajudar todo mundo está sendo conveniente para meia dúzia. É uma caixa preta, onde não há diálogo nem transparência com os artistas —e, sem eles, não haveria Spotify."

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