Conteúdos como esses, no entanto, correm soltos na internet. Em um vídeo no Instagram, uma garota de 5 anos experimenta um tênis com rodinhas que vira um patins vendido pela Kidy, plataforma de comércio de roupas e calçados infantis. Já outra postagem no TikTok exibe uma menina lavando os cabelos com uma linha de cosméticos da Nazca, especializada para crianças: "muito obrigada por enviar esses produtinhos", agradece a protagonista.

Livremente reproduzidos nas redes sociais, os vídeos descritos na abertura desta reportagem não poderiam ser veiculados na TV aberta, alertam especialistas ouvidos pela reportagem.
A publicidade direcionada ao público infantil está sujeita a diversas restrições, de acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e com o CDC (Código de Defesa do Consumidor). Uma propaganda pode ser considerada abusiva e ilegal caso "se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança", define o segundo parágrafo do artigo 37 do CDC.

O "direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço" também é considerado abusivo por uma resolução de 2014 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), vinculado ao governo federal. O uso excessivo de cores e animações, além de personagens e apresentadores infantis, aponta para essa prática.
Esses limites, porém, nem sempre são respeitados nas plataformas digitais. "Qual é a diferença entre divulgar uma boneca na internet e apresentar numa televisão? É publicidade dos dois jeitos", questiona a procuradora Ana Elisa Segatti, do MPT (Ministério Público do Trabalho).

O advogado Christian Printes, gerente jurídico do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), concorda."Ao enviar os brinquedos e tênis para os influenciadores mirins, o fornecedor espera justamente que seus produtos sejam compartilhados com o público alvo dos influenciadores, que são as crianças", explica.
Propagandas de videogames, material escolar, roupas e sapatos, comidas e bebidas aparecem em profusão no feed de crianças e adolescentes. Quase metade dos usuários entre 9 e 17 anos (49%) tiveram contato com conteúdos de publicidade inapropriados para sua idade, revela a pesquisa TIC Kids Online.
"Casos de unboxing [gravações de produtos abertos em frente a uma câmera] também podem configurar publicidade infantil abusiva", reforça Printes, do Idec. A pesquisa TIC Kids Online mostrou que 59% dos usuários assistiram a pessoas desfazendo embalagens e 56% já viram influenciadores exibindo 'presentes' de marcas variadas.
A Repórter Brasil entrou em contato com Multikids, Kidy e Nazca, mas não houve resposta até o fechamento da reportagem. O texto será atualizado se os posicionamentos forem enviados.
Plataformas dizem que conteúdos postados precisam seguir legislação
Em seus termos de uso, o TikTok afirma que o usuário precisa assegurar que o conteúdo publicitário esteja "em conformidade com todas as leis e regulamentos aplicáveis".
A Meta, controladora do Instagram, vai na mesma linha e ainda menciona que os perfis devem seguir os códigos de publicidade construídos pela própria indústria - no caso do Brasil, essa é uma atribuição do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), composto por agências, anunciantes e veículos de comunicação.
Em 2020, a entidade lançou um guia com orientações para publicidade feita pelos influenciadores digitais. O documento enfatiza que o conteúdo deve sempre ser identificado como publicidade e reforça a orientação do próprio conselho: "nenhum anúncio dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança".
Com 40 anos de atuação no Brasil, o Conar enfrenta o desafio de monitorar as peças de publicidade no universo digital, veiculadas em uma escala muito maior do que as realizadas em jornais, revistas, rádios e canais de televisão.
Ao ser questionado sobre os principais desafios para o Conar, o presidente Sérgio Pompílio foi categórico. "São três: meios digitais, meios digitais e meios digitais", disse em entrevista ao portal Meio & Mensagem em 2022, no início de seu primeiro mandato à frente do conselho.
Só no ano passado, o Conar instaurou mais de 300 representações, envolvendo denúncias de publicidade de influenciadores digitais, apostas ilegais e anúncios fraudulentos, dentre outros temas.
Ainda que o número de procedimentos instaurados se mantenha relativamente estável na última década, a taxa de representações contra plataformas digitais explodiu. Em 2016, 48% dos processos instaurados vieram da internet. No ano passado, o índice escalou para 84,6%.
"Falta fiscalização. Não existe por parte das plataformas digitais uma obrigação legal de fazer uma verificação prévia se aquele conteúdo está de acordo com o Código de Defesa do Consumidor. Isso deveria ser uma obrigação", finaliza Printes.
O Conar mantém um canal aberto para reclamações dos consumidores. Após o contato da Repórter Brasil, o conselho abriu um "processo ético" para analisar o vídeo de produtos de cabelo da marca Nazca no TikTok. A análise deve acontecer em breve, de acordo com a entidade.
O que dizem as plataformas sobre a publicidade infantil na internet
O Instagram admite a vulnerabilidade de pessoas com menos de 18 anos diante de conteúdos publicitários.
Em nota enviada à reportagem, disse reconhecer que "os adolescentes não estão necessariamente tão equipados quanto os adultos para tomar decisões sobre como seus dados on-line são usados para publicidade, especialmente quando se trata de mostrar a eles produtos disponíveis para compra".
O TikTok também elencou uma série de medidas para a proteção da criança e do adolescente em sua plataforma, como campanhas sobre educação midiática e segurança na internet. Além disso, a empresa veta a monetização do conteúdo produzido por pessoas com menos de 18 anos.
O Youtube destacou a criação do Youtube Kids, um aplicativo dentro do site principal com filtros mais restritivos. Nesse espaço, diz a nota, vídeos com inserções pagas de produtos são proibidos.
O Youtube Kids também veta conteúdos "que sejam muito comerciais ou promocionais", como "anúncios tradicionais de produtos e serviços enviados por criadores de conteúdo ou marcas e conteúdo que incite diretamente o espectador a comprar um produto".
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