Dificilmente um dia passa sem que haja um novo estudo e uma rodada de manchetes soando o alarme sobre alimentos ultraprocessados.
Esta categoria abrangente —incluindo refrigerantes, carnes processadas e muitos cereais matinais, lanches, refeições congeladas e iogurtes com sabor— tem sido associada a uma série de problemas de saúde, como obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardíacas, condições intestinais e depressão.
No entanto, quando um comitê de 20 dos principais cientistas de nutrição dos Estados Unidos se reuniu no final de outubro para montar recomendações para a próxima edição das Diretrizes Dietéticas para Americanos, eles afirmaram que não há evidências suficientes para afastar as pessoas desses alimentos.
As Diretrizes Dietéticas para Americanos, ou Dietary Guidelines for Americans, são um guia de alimentação emitido pelo Departamento de Agricultura e de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Essas diretrizes são usadas para definir padrões para programas alimentares federais e informar como os médicos aconselham seus pacientes sobre nutrição.
Novos limites para ultraprocessados, que compõem uma grande parte do que crianças e adultos nos EUA consomem, poderiam mudar drasticamente as dietas dos americanos, dizem os especialistas.
Os departamentos irão, em última análise, emitir as diretrizes, que estão previstas para serem lançadas até o final de 2025. Não está claro como o retorno de Donald Trump à Casa Branca pode afetá-las.
Mas as conclusões apresentadas no mês passado sugerem que tal política pode ser improvável.
Por que o comitê não fez uma recomendação?
Parte do trabalho do comitê era revisar a pesquisa sobre alimentos ultraprocessados e, em seguida, resumir essas descobertas em um relatório que eles enviarão às agências federais até dezembro.
O grupo de especialistas foi especificamente encarregado de avaliar se os alimentos ultraprocessados tinham alguma influência na composição corporal (como massa de gordura ou circunferência da cintura) ou no risco de obesidade em crianças e adultos.
Nos 41 estudos que revisaram —mais da metade dos quais eram sobre crianças e adolescentes— os especialistas encontraram uma ligação relativamente consistente entre o consumo de alimentos ultraprocessados e um maior risco de se tornar acima do peso ou desenvolver obesidade.
Mas o comitê citou algumas preocupações sérias sobre a qualidade da pesquisa, incluindo que muitos estudos foram conduzidos fora dos Estados Unidos, onde os alimentos ultraprocessados podem ser formulados de maneira diferente.
Outra questão era que muitos dos estudos foram baseados em registros alimentares coletados de participantes décadas atrás, então os pesquisadores que conduziram esses estudos tiveram que fazer suposições fundamentadas sobre quais alimentos eram ultraprocessados e quais não eram.
A maioria dos estudos incluídos na revisão também era observacional, o que significa que não podiam provar causa e efeito da mesma forma que os ensaios clínicos podem.
Essas preocupações com a pesquisa levaram o comitê a concluir que as evidências ligando alimentos ultraprocessados à obesidade eram muito limitadas para fazer uma recomendação sobre eles.
Em vez disso, o comitê concentrou suas recomendações naquelas que tinham pesquisas mais robustas para apoiá-las, como enfatizar dietas centradas em vegetais, frutas, leguminosas, grãos integrais, produtos lácteos com baixo teor de gordura ou sem gordura, e peixes ou frutos do mar. Eles disseram que as pessoas deveriam limitar o consumo de carnes processadas e bebidas adoçadas com açúcar —dois produtos que estão incluídos na categoria ultraprocessada e têm ligações claras com doenças crônicas.
Marion Nestle, professora emérita de nutrição, estudos alimentares e saúde pública na Universidade de Nova York, diz que, em sua opinião, o comitê estabeleceu um padrão muito alto para os estudos que incluíram em sua revisão e deixou de fora evidências importantes sobre alimentos ultraprocessados.
Eles excluíram o único ensaio controlado randomizado dos Estados Unidos que ligava diretamente o consumo de alimentos ultraprocessados ao ganho de peso e à alimentação excessiva devido ao seu pequeno tamanho e curta duração —incluiu apenas 20 participantes e durou um mês.
Isso foi um erro, afirma Nestle. Esse estudo foi rigorosamente controlado e mostrou claramente que os alimentos ultraprocessados faziam as pessoas comerem em excesso e ganharem peso, diz ela. É difícil e caro conduzir ensaios maiores e de longo prazo em nutrição, acrescenta, então, em vez de esperar por mais evidências, ela acha que a pesquisa existente é suficiente para recomendar que as pessoas comam menos alimentos ultraprocessados.
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Dariush Mozaffarian, cardiologista e diretor do Instituto Food is Medicine na Universidade Tufts, concorda —acrescentando que as evidências ligando alimentos ultraprocessados à má saúde são mais consistentes para aqueles que são ricos em certos ingredientes, como carboidratos refinados, açúcares adicionados e sódio.
Se a próxima versão das diretrizes dietéticas não incluir orientações sobre a limitação de alimentos ultraprocessados, essa é "uma oportunidade perdida" para ajudar a direcionar os americanos para dietas mais saudáveis, acrescenta.
Como as diretrizes dietéticas definem padrões de nutrição para serviços federais, incluindo influenciar quais alimentos estão disponíveis em escolas e centros de cuidados infantis e através de programas alimentares de baixa renda, também é uma oportunidade perdida para melhorar a saúde de um em cada quatro americanos que são atendidos por tais programas, afirma Jerold Mande, professor adjunto de nutrição na Escola de Saúde Pública de Harvard e ex-oficial sênior de políticas em várias agências alimentares federais.
"Você agora deixou nossos filhos com pelo menos mais uma década de Lunchables [marca americana de alimentos e salgadinhos] como alimentos saudáveis em suas refeições escolares", diz Mande, que também é o diretor executivo da Nourish Science, organização sem fins lucrativos focada em melhorar a política e a pesquisa de nutrição nos Estados Unidos.
Por que há dificuldade?
É desafiador para os especialistas em saúde fazer recomendações sobre alimentos ultraprocessados quando a ciência ainda está emergindo, diz Maya Vadiveloo, professora associada de nutrição na Universidade de Rhode Island.
A categoria de alimentos ultraprocessados é ampla, e se você recomendar evitar todos eles, pode estar cortando alguns alimentos que são realmente benéficos, acrescenta. Cereais matinais e iogurtes, por exemplo, têm sido associados a riscos mais baixos de doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2.
Precisamos de mais pesquisas para desvendar essas nuances, concordam vários especialistas. Mas alguns dizem que não é cedo demais para começar a incorporar algumas dessas orientações nas recomendações federais.
"A formulação de políticas é sempre sobre ter que tomar decisões com ciência imperfeita", afirma Mande. Assim como o governo tomou medidas rápidas na produção de vacinas contra a Covid enquanto a ciência ainda estava evoluindo, ele diz, deveria responder com urgência semelhante às altas taxas de doenças crônicas e obesidade nos Estados Unidos.
Não ajuda que a pesquisa em nutrição seja cronicamente subfinanciada nos Estados Unidos. Apenas pouco mais de 4% do orçamento dos Institutos Nacionais de Saúde financia pesquisas em nutrição, apesar das evidências de que dietas pobres contribuem para muitas condições crônicas. O comitê consultivo das diretrizes dietéticas "não pode fazer seu trabalho, porque não tem a pesquisa", diz Mande.
Mozaffarian empatizou com os membros do comitê, observando que eles voluntariam seu tempo e expertise por dois anos e são frequentemente criticados injustamente por seu trabalho.
"A indústria pode fazer quase qualquer coisa com os alimentos sem provar que são seguros", como combinar nutrientes e sabores para tornar os alimentos irresistíveis e incorporar aditivos com compreensão limitada de como eles nos afetam, diz ele.
No entanto, o comitê consultivo das diretrizes dietéticas só pode recomendar que as pessoas evitem certos alimentos quando há evidências convincentes de que são prejudiciais, diz Mozaffarian. "É apenas uma luta injusta desde o início."