Um dos melhores espetáculos em cartaz em São Paulo, "Cão Vadio", da trupe curitibana Ave Lola, se descreve como uma viagem ao mundo do realismo fantástico com personagens livremente inspirados na literatura latino-americana de García Márquez, Llosa e Borges, que se funde a trechos de William Shakespeare e Anton Tchekhov para criar uma celebração inspiradora da condição humana, construída com riqueza estética e emocional.
Usando a linguagem do cabaré em uma dramaturgia não-linear, oito atores e dois músicos apresentam de maneira poética essas figuras que vivem às margens da sociedade e enfrentam questões como migração, violência e intolerância.
As músicas executadas ao vivo, também do cancioneiro popular da América Latina, nos conduzem a uma reflexão profunda sobre nossas mazelas, nós que vivemos à sombra de uma Ditadura Militar que durou 21 anos e que ainda hoje teima em exibir seus tentáculos.
"Cão Vadio" com seus maravilhosos protagonistas, bem como seu canto, sua dança, suas acrobacias e seus bonecos, reafirma o compromisso da Ave Lola com a criação de um teatro que emociona, questiona e conecta, reafirmando o poder da arte como ferramenta de diálogo e resistência.
Três perguntas para…
… Ana Rosa Tezza
Como foi o trabalho da escrita dramatúrgica de Cão Vadio?
Escrevi um texto que foi o disparador de toda a pesquisa e que aparece no prólogo da peça, quando o personagem explica o "Cão Vadio" — uma terra onde todos os relógios andam até a metade e depois retrocedem. Mas não era para ser lido ou falado em cena, eu queria que os atores percebessem o lugar em que eu gostaria que o espetáculo acontecesse, na borda do mundo, num lugar de excluídos, onde as coisas estão fadadas a não completar o seu ciclo. Onde a boa ventura chega quase a acontecer mas não acontece.
A dramaturgia nasce desse desejo de pertencimento, esse olhar de cima para baixo que a gente recebe das pessoas que estão no centro do mundo. Esse olhar colonizado que temos para com as coisas que vem de fora. Uma ideia de um mundo melhor lá onde não estamos e nunca estaremos.
Como somos uma companhia que está há muitos anos junta, essa forma de operar vem sendo aprofundada. Minha escrita não chega pronta. Venho com fragmentos, com poesias que eu escrevo, e às vezes e penso "isso aqui pode virar um cena", como os trechos de Shakespeare e de Tchekhov que fazem parte do espetáculo.
Por que escolheu o teatro de cabaré para apresentar essa peça?
A dramaturgia é banhada nos estudos sobre o cabaré porque ele é a linha que costura a colcha de retalhos tão diversa que é a América Latina. O cabaré também dá espaço para o realismo fantástico que foi criado ao longo dos anos por artistas como García Márquez e Llosa e que fala de forma tão acertada sobre nós.
Não há textos deles na peça, porém capturamos a forma quase hiper-realista como eles enxergam e descrevem as coisas e trazemos para dentro do espetáculo. As acontecências desse nosso lado do hemisfério, combina com o cabaré. Então foi com esses grandes autores, com imagens de artistas visuais potentes, acompanhada da improvisação dos atores e atrizes que fizemos esse trabalho.
Quem não crê no mistério não faz teatro?
O teatro é composto de uma porção grande de técnica e de racionalidade, mas há um momento em que você tem que invocar os deuses e as deusas do teatro e aí algo misterioso revela a obra para a gente. No Brasil, o espaço do teatro é muito precário e é difícil saber até onde conseguimos ir com um espetáculo. O mistério resolve até essa precariedade, e também ajuda esteticamente em muitas coisas.
Teatro Estúdio - r. Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos, região central. Qui. a sáb., 20h. Dom., 18h. Até 1º/12. Ingressos: pague o quanto vale (distribuídos 1h antes na bilheteria, por ordem de chegada)