Uma das primeiras coisas que se vê ao entrar na casa da galerista Vilma Eid é uma obra concreta de Geraldo de Barros. A tela é um triângulo, apesar de uma moldura quadrada, e a diagonal separa o vazio de uma estampa de trapézios sob um fundo branco.
Mas é só olhar para o lado para ver que a casa está abarrotada de arte. Há quadros em todas as paredes, nichos repletos de esculturas de barro e madeira, obras desde artistas célebres do cânone brasileiro a pessoas com pouca visibilidade, descobertas pela dona da casa.
Eid fundou a Galeria Estação há 20 anos, mas atua na área há quatro décadas. A galerista teve um importante papel em elevar o status da arte popular brasileira. "Arte é arte. Não importa a classificação", afirma.
É essa coleção vasta que o Instituto Tomie Ohtake agora organiza em seu espaço expositivo, com curadoria de Ana Roman e Catalina Bergues, tentando preservar a essência da morada da galerista. É o caso, por exemplo, do diálogo face a face entre uma tela concreta de Judith Lauand e uma abstração informal de Clóvis Aparecido dos Santos.
Lauand, única mulher integrante do grupo vanguardista Ruptura, estabelece ritmo com uma linguagem formal. Retângulos dourados, semelhantes a dominós, são dispostos contra um fundo branco. Já o artista do interior paulista exibe obras repletas de cores, com traços caóticos e figuras híbridas entre os contornos abstratos.
Entre a desordem fluida de um e a estrutura geométrica do outro há uma harmonia em comum. "Queremos tensionar as formas de olhar e pensar, estamos nos apropriando e ressignificando as categorias", diz Roman, destacando que a coleção tem artistas célebres como Tunga, Mira Schendel e Mirian Inêz da Silva.
Mas a curadoria traz um interesse particular por achados de Eid, artistas que ela representa como galerista, como Véio e Zé Bezerra, escultores em madeira que hoje estão em instituições país afora.
Outro caso é Alcides Pereira dos Santos, de trajetória bem detalhada na mostra. Uma das paredes tem uma série de pinturas de aviões, modelos reais catalogados nos anos 1990 e 2000 pelo baiano e retratados em cores vivas sob um plano chapado e geométrico.
Já "Planalto", de 1998, é uma paisagem com um lago e um campo, onde garças relaxam. Montanhas estão espalhadas pela tela, tal qual uma muralha entre o campo e as aves. Atrás, pessoas gigantes observam a cena, tranquila e onírica.
Santos costuma ser encaixado no estilo naif, mas, em obras de períodos diferentes, o baiano traz um teor político mais evidente, como uma em que três monstros observam o desmatamento de uma floresta, com a inscrição irônica "Brasil é desenvolvimento".
"Exibimos vários momentos diferentes da trajetória de pessoas com que, em alguns casos, Vilma teve uma relação pessoal pelo passar das décadas que os representou", diz Bergues. "As pessoas veem como o moderno influencia o popular, mas nossa ideia é o inverso. Picasso foi inspirado por máscaras africanas em suas pinturas, e os estilos coexistiam."
A obra de José Antônio da Silva, primeiro artista a entrar para a coleção de Eid, segue a mesma linha. Com um panorama que vai de 1948 a 1987, ele retrata o desmatamento e o êxodo rural ao lado das festas populares do interior paulista —sem deixar de pensar as mudanças do seu tempo, como em "Navio a Vapor", de 1957.
O ponto de vista caipira também reflete o dinamismo da vida urbana nas telas de Ranchinho de Assis. Com pinceladas expressionistas, as luzes são borradas pelo movimento, ecoando as mudanças que percebeu no cotidiano, desde seu nascimento, em 1923, à morte, aos 80 anos.
Ainda nessa discussão, as curadoras lançam, em maio, o livro "Arte Popular: Modos de Usar" pela editora Martins Fontes. Organizado por Amanda Tavares, pesquisadora do tema, o volume terá textos de Lélia Coelho Frota e Fernanda Pitta, entre outros.