Por seu histórico como casa de shows, fundada há 42 anos e palco fundamental para o desenvolvimento de cenas como o rock brasileiro nos anos 1980, o Circo Voador já mereceria o título de "Patrimônio Cultural Imaterial do Rio de Janeiro", concedido na última quinta-feira.
Mas tratar o Circo como casa de shows revela pouco de sua natureza. Aquele território que inclui uma lona e gigantescas palmeiras imperiais, vizinho dos Arcos da Lapa, é a consolidação de uma utopia de cidade —e, consequentemente, de sociedade.
O fato de essa utopia se dar na Lapa —caldeirão que desde sempre ferve a rua em seu estado mais puro, atravessando fases de glamour e decadência, muitas vezes ao mesmo tempo— torna tudo ainda mais forte. E não só por sua localização no centro, que permite que vários Rios se cruzem ali, a despeito dos problemas crônicos de mobilidade urbana da cidade, sobretudo para os que moram fora da zona sul.
O espírito que se manifesta no Circo foi gestado ainda em sua primeira encarnação, no verão de 1982, no Arpoador —abençoada pela Praia do Diabo ao fundo, como lembra Maria Juçá, comandante da casa, no livro "Circo Voador: A Nave". Ele nasce como espaço para abrigar e amplificar as ideias de uma juventude carioca que aspirava o futuro naquele início de década, tendo no horizonte a redemocratização que se anunciava nos sinais visíveis de enfraquecimento da ditadura vigente desde 1964.
Essa juventude incluía artistas plásticos da Geração 80, grupos teatrais como Asdrúbal Trouxe o Trombone, o coletivo de poetas Nuvem Cigana, bandas como Blitz e Barão Vermelho e a coreógrafa Deborah Colker. Liderados por Perfeito Fortuna, eles instalaram a primeira lona e desenharam as linhas mestras da utopia que o Circo representa.
Cumprindo —não sem resistência— as determinações do contrato estabelecido com a prefeitura, a lona com capacidade para 300 pessoas é desmontada após menos de três meses de funcionamento. Se sua história acabasse ali, o Circo teria já desempenhado seu papel de espasmo de utopia, ou seja, de sonho dourado que, como é da natureza do sonho, não se sustenta frente à dureza do real. Mas não.
Naquele mesmo ano, o Circo reabre na Lapa, com uma estrutura dez vezes maior do que a original. O novo endereço revela e amplia os sentidos da utopia, como se ela abraçasse o legado desse espaço por onde circularam Madame Satã e Manuel Bandeira, Villa-Lobos e Carmem Miranda, Machado de Assis e Noel Rosa. E, sem abrir mão do sonho, consegue se afirmar como equilibrista na corda bamba desencantada e desromantizada do mercado.
A utopia do Circo teve que se afirmar ainda sobre circunstâncias políticas, como as que determinaram o seu fechamento. Na ocasião, em novembro de 1996, o prefeito eleito Luiz Paulo Conde foi comemorar sua vitória nas urnas no Circo Voador, numa noite em que as atrações eram as bandas punk Ratos de Porão, Garotos Podres e Serial Killer. Entrou ao som de marchinhas como "Cidade Maravilhosa" e "Cabeleira do Zezé", espírito de comício. Foi vaiado e xingado. Dois dias depois, o Circo foi fechado. A reabertura se deu apenas em 2004.
Honrando o chão da Lapa, o Circo é há 42 anos guiado pela compreensão funda do valor do encontro e por um olhar amplo sobre a vida e sobre o Brasil —onde convivem João Gordo e Chico Buarque, só para citar dois exemplos de personagens que passaram por lá. Há centenas de noites memoráveis em seu histórico, e o mais bonito é que elas continuam brotando, incessantemente, documentando o calor do presente: Os Garotin, Ana Frango Elétrico e Marina Lima, para lembrar alguns shows que aconteceram neste ano.
O Circo é a Domingueira Voadora da Orquestra Tabajara, os bailes de Paulo Moura e o mais recente Baile do Almeidinha, de Hamilton de Holanda. É Ramones e Raimundos, Chico Science e Pato Fu e outras bandas que renovaram a música brasileira na década de 1990 e estavam ali desde o início. É o rap dos 1990 e o trap dos 2020. É Celso Blues Boy.
É a celebração dos grandes nomes sexagenários, e septuagenários, e octogenários da MPB, como Caetano Veloso e seu "Cê", Gal Costa e seu "Recanto", Ney Matogrosso e seu "Beijo Bandido", Chico Buarque e seu "Carioca". É o mestre de cerimônias Lencinho dando rosto, dreads e gestual à alma da casa. É a sabedoria que dança de Lee Perry. É o fogo do Franz Ferdinand em seus primeiros anos. É Mart’nália abrindo o verão.
E, sobretudo, o Circo é a magia que se dá quando a lona envolve no mesmo abraço artista e público, potencializando a níveis estratosféricos a experiência de ambos —é rara a forma como isso se manifesta ali.
Alguns podem apontar as causas na arquitetura da casa, no apelo emocional de seu histórico, na qualidade da curadoria. São elementos e pistas, isso é certo. Mas magia não se explica. E utopia se vive —enquanto ela arde pelo tempo que tiver que arder, agora oficialmente reconhecida como o patrimônio que todos os que o frequentamos sabemos desde sempre.