Para tentar solucionar o problema de uma doença negligenciada, é preciso prestar atenção e investir nela. É o que a pesquisadora Thaiany Goulart de Souza e Silva, 30, fez, em meio a dificuldades financeiras, durante anos em seus projetos de pesquisa sobre a doença de Chagas. Não parou por aí. Ampliou um pouco mais o olho científico para hoje participar de um estudo que busca melhorar vacinas.
Souza e Silva, pesquisadora da Universidade Harvard, é uma das cientistas escolhidas para participar da série Folha Descobertas, iniciativa da Folha em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein.
Talvez você ainda se lembre de ter estudado algo no colégio relacionado à doença de Chagas, como a transmissão do protozoário Trypanosoma cruzi pela picada do inseto conhecido como barbeiro.
A condição é classificada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma doença tropical negligenciada —classificação dada a um grupo de condições causadas por patógenos e normalmente prevalentes em comunidades mais pobres de áreas tropicais.
Só de janeiro de 2023 a janeiro deste ano, foram registrados 5.460 casos de doença de Chagas no país, sendo a maioria (63%) na zona urbana e com pacientes na faixa dos 50 aos 69 anos, segundo dados do Ministério da Saúde.
"A grande maioria da pesquisa sobre a doença de Chagas é feita por nós, pelos países que são acometidos pela doença", diz Souza e Silva. "E fazer pesquisa no Brasil é um desafio, em termos de conseguir verba para desenvolver a pesquisa. Tem pouca verba."
Ela relembra que o médico e cientista brasileiro Carlos Chagas descreveu a doença de Chagas em 1909. "De lá para cá, ainda temos apenas dois fármacos usados para tratar e com limitação em eficácia, dependendo da fase em que é administrada."
Há outro problema em relação a essas medicações (o benznidazol, como primeira linha de tratamento, e o nifurtimox). Se utilizadas na fase aguda da doença, cerca de 80% das pessoas acabam curadas, diz a pesquisadora. Mas dificilmente o diagnóstico ocorre nesse momento inicial, o que complica o prognóstico dos doentes.
Sem o tratamento no início da doença —uma parcela enorme não sabe nem que está doente—, as pessoas que foram infectadas podem desenvolver, durante a fase crônica da condição, problemas cardíacos e digestivos.
É aí que entra o mestrado da pesquisadora. No trabalho, ela olhou para aspectos básicos da imunologia da doença de Chagas e buscou ver quais fármacos disponíveis no mercado e receitados para outras enfermidades poderiam servir para o tratamento da condição.
O aceturato de diminazeno, usado contra a doença do sono, também causada por um Trypanosoma, foi a droga escolhida para testes em modelos animais. A pesquisa detectou melhora na inflamação do coração dos animais infectados com o Trypanosoma cruzi.
O projeto, porém, não evoluiu além do estudo em animais.
Os alelos de Chagas
Para ter uma maior proximidade com os pacientes que sofrem com a doença, Souza e Silva buscou um doutorado na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Ir à universidade em Belo Horizonte, porém, exigia uma bolsa. "Eu precisava passar em primeiro lugar para ter certeza de que a teria", conta a pesquisadora. A tentativa terminou em sucesso.
A bolsa conquistada garantia o sustento para o doutorado, iniciado em 2020, na capital mineira, mas não sem sustos. "Foi um período muito difícil, de muitos cortes [de verbas na ciência]. Então, dava uma insegurança enorme, de atrasos, às vezes, de bolsa."
No doutorado, Souza e Silva teve acesso facilitado a amostras de pessoas com cardiopatias por Chagas. Passou, então, a tentar identificar marcadores imunológicos no sangue das pessoas que fossem úteis para observar alterações no coração —afinal, efetuar uma biópsia do coração não é algo tão simples.
Segundo a cientista, esse tipo de observação talvez possa beneficiar, um dia, o tratamento e acompanhamento dos pacientes com a doença negligenciada.
Parte da pesquisa no doutorado foi também dedicada a alelos —em linhas gerais, variações, em grupos de pessoas, de um mesmo gene— que codificam o HLA (sistema de antígenos leucocitários humanos) em pacientes com Chagas. O HLA é uma proteína expressa em células em que há corpos estranhos ao nosso corpo.
Resumidamente, a cientista separou os pacientes com Chagas em grupos de acordo com o tipo de alelo de HLA e olhou para os marcadores imunes. O ponto central da ideia era verificar os alelos de HLA associados a uma maior susceptibilidade do indivíduo de desenvolver a cardiopatia de Chagas.
"Vemos realmente uma associação desses alelos de HLA com a chance desse indivíduo desenvolver formas mais graves da doença de Chagas", diz a pesquisadora, sobre o trabalho que está para ser publicado em uma revista científica.
Vida de pesquisador
As bolsas de pesquisa foram essenciais para a pesquisadora. Para ir em frente na vida, ela também soube da importância de contar com um círculo de apoio pessoal e profissional. Mas, além disso, ela tem para si que é preciso tentar a sorte.
"A gente tem que tentar. Não adianta só ficar especulando, ‘será que sim, será que não?’. É importante a gente se propor, se desafiar, porque pode se surpreender positivamente", diz Souza e Silva.
Essa foi uma das lições que tirou de um concurso para professora substituta na Unifal (Universidade Federal de Alfenas) —na qual cursou a graduação e o mestrado— que prestou para entender como funcionava o processo. Na época, ainda durante o mestrado, ela não esperava muita coisa do concurso.
Resultado: primeiro lugar. Souza e Silva conseguiu a vaga e passou seis meses dando aula de histologia básica para os cursos de odontologia e de fisioterapia.
Antes disso, ao entrar na faculdade de nutrição, na Unifal, ela nem fazia ideia que gostava tanto de pesquisas, nem que seus anos seguintes seriam destinados a tentar decifrar uma doença negligenciada, nem que hoje estaria em Harvard trabalhando com vacinas.
Porém, quando pegou gosto pela pesquisa, percebeu que não gostaria de se limitar a aspectos gerais de possíveis estudos sobre nutrição. Por isso, saltou para a imunologia em seu mestrado.
"Gosto da pesquisa em si", diz a cientista.
E foi assim que, no mestrado, encontrou a doença de Chagas. "Confesso que foi algo que, de início, eu não estava esperando."
Da UFMG para Harvard, de Chagas para vacinas
Ainda durante o doutorado, pôs mais uma vez em prática a ideia de tentar, para ver o que acontece. Dessa vez, tentou um curso de imunologia avançada e foi selecionada e premiada, pela American Association of Immunologists, para ir a Boston, nos EUA, para um período de palestras.
Os contatos feitos naqueles dias renderam um convite para integrar uma equipe de Harvard.
Esse grupo de pesquisa, em seu pós-doutorado na Escola de Medicina de Harvard, acabou surgindo quando, durante a pandemia, um pesquisador observou que pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 que usavam um fármaco contra uma doença que acomete os ossos ficavam menos tempo internadas e desenvolviam formas menos graves da Covid.
Com isso em mente, a equipe tenta verificar, inicialmente em testes em modelos animais, se o fármaco em questão, usado como adjuvante em vacinas —basicamente, um composto adicionado à vacina— poderia melhorar a resposta imune.
O foco no momento ainda são vacinas contra a Covid, mas a ideia é testar o uso para outras doenças também.
Os próximos passos no futuro de Souza e Silva ainda estão em aberto. Seu desejo, porém, é voltar ao Brasil e, quem sabe, futuramente estar estabelecida no país como uma pesquisadora de referência. O desafio já está em curso.
Folha Descobertas
A série apresenta, quinzenalmente, os perfis de dez jovens pesquisadores brasileiros de diferentes áreas de atuação e regiões do país. Para chegar aos nomes deles, a seleção partiu de indicações de um comitê formado por figuras de destaque do cenário científico nacional.
A série Folha Descobertas é uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein