No rastro da polarização política que inflamou debates por todos os lados, o Brasil tem enfrentado uma crescente onda de censura às artes. Expressões antes consideradas comuns, como o conteúdo de viés sexual exibido com normalidade em atrações da TV que marcaram época, agora são alvo de críticas, com grupos de diferentes inclinações políticas, à direita e à esquerda, buscando silenciar as manifestações artísticas, sobretudo aquelas criadas por pretos, pobres e a comunidade queer.
Essa última década viu ganhar espaço no debate público a nova direita, que trouxe consigo as chamadas pautas de costume. Temas relacionados a sexualidade, raça, gênero e infância tomaram protagonismo no debate público.
Para boa parte dos artistas, muitos dos quais têm como profissão cutucar certas feridas e rir dos nossos costumes, esse novo cenário significou um escrutínio sem precedentes, intensificado pela virulência das redes sociais.
Uma parte da população vê na Lei Rouanet um sinônimo de pilantragem. Do Estado, passaram a vir liminares proibindo apresentações e mostras. Mais tarde, entraves administrativos passariam a dificultar a captação de recursos baseados em leis de incentivo à cultura.
Isso foi o que aconteceu para uma parte da classe artística brasileira. Para artistas que vêm das periferias do Brasil, no entanto, essa mão de ferro, ora vinda do Estado, ora vinda da sociedade, é uma constante já há um bom tempo, muito antes do ano de 2017.
"Em alguns momentos da história, o Estado conseguia simultaneamente estimular algumas linguagens e perseguir artistas dessas linguagens", diz Guilherme Varella, professor da Universidade Federal da Bahia e membro do Móbile, o Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística.
Um exemplo clássico é o samba, afirma o professor. Se, por um lado, o Estado usava o ritmo como signo de ufanismo e homogeneização nacional, "havia uma lei da vadiagem que perseguia os sambistas, além de uma ação policial muito forte para tentar dissolver os núcleos ‘vagabundos’ do samba", ele diz.
Se, no início do século 20, sambistas eram repreendidos sob acusações de "vadiagem", hoje o alvo principal é o funk. Praticamente desde que surgiu, o ritmo carregou consigo estigmas negativos. O ano era 1992, e as praias da zona sul do Rio de Janeiro eram palco dos chamados "arrastões" —grupos de jovens das periferias da cidade protagonizavam assaltos em massa nas praias, tirando o sossego dos mais endinheirados.
Geralmente, eram legiões rivais de comunidades diferentes da cidade, que marcavam de se enfrentar na areia —os episódios eram tanto uma prática criminosa quanto uma batalha por sua presença ali. A polícia intervinha, e, no dia seguinte, palavras como "pânico", "desesperança" e "violência" estampavam as páginas dos jornais brasileiros.
"Começou a noticiar ali nos anos 1990 que os culpados pelos arrastões eram os funkeiros", diz Juliana Bragança, historiadora e autora do livro "Preso na Gaiola: A Criminalização do Funk Carioca nas Páginas do Jornal do Brasil".
"Para determinados setores da população, pouco importa se o governo da ocasião é de esquerda ou de direita", afirma o advogado Danilo Cymrot, autor do livro "O Funk na Batida". Ele dá o exemplo da Lei de Drogas de 2006, promulgada no primeiro mandato de Lula, que em sua visão contribuiu para o aumento do encarceramento em massa.
"Além disso, foi um governo de esquerda, do presidente Lula, que mandou as Forças Armadas dominarem as favelas do Rio de Janeiro", acrescenta, sobre o processo de implementação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, no início da década passada. Os comandantes chegaram a proibir bailes funk em determinadas favelas. Em alguns casos, como o da Rocinha, o funk foi proibido, mas as festas de forró, não.
"O governo, claro, não tem controle sobre tudo, inclusive sobre o poder Judiciário. Mas eu diria que grande parte dos MCs que tiveram problemas com a Justiça aconteceu ao longo de governos de esquerda.
Depois, com um governo de direita, não mudou", diz Cymrot, também pesquisador. "A gente está falando de uma população que há séculos é alvo preferencial do sistema penal."
Os leões do funk estão de volta
Faltava pouco mais de uma semana para o Natal. Naquela quarta-feira de 2010, ano da ocupação do Complexo do Alemão, Wallace Ferreira da Mota acordou ouvindo pancadas na sua porta. Era a polícia.
"Meu filho não vai acreditar que estou te prendendo", disse um dos homens. "Como é que é?", disse Ferreira da Mota, que ouviu de volta "você está preso".
Ferreira da Mota, que na época morava no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, é MC Smith, funkeiro dono de faixas como "Vida Bandida". Ele integrou o elenco do filme "Alemão", indicado ao Emmy Internacional, junto de Caio Blat e Cauã Reymond. É de Smith a música "Vida Bandida 2", que guia a trilha sonora do trailer do longa.
Há 14 anos, o artista foi preso junto com os MCs Tikão, Frank e Max. Em comum, todos eram expoentes do chamado funk proibidão, que costuma tocar em assuntos como armas, crimes e facções.
Eles foram acusados de fazer apologia do tráfico de drogas e de associação com o crime. "Esses MCs trazem os jovens para o tráfico ao enaltecer o uso de armas, o roubo, o crime, incentivar a violência contra a polícia e enaltecer a facção criminosa", afirmou a delegada Helen Sardenberg, à Globo, na época.
Eles foram soltos menos de dez dias depois, na véspera do Natal. O então ministro Ari Pargendler, do Superior Tribunal de Justiça, determinou que os artistas não poderiam ficar mais de cinco dias presos pelo fato de o crime de apologia não ser hediondo.
"A gente ficou muito queimado nessa época", diz Ferreira da Mota. Com o tempo, o funkeiro passou a receber convites para apresentações em festas de 15 anos, casamentos e ainda as festas promovidas por prefeituras. MC Smith conta que, quando os contratantes viam que ele já tinha sido preso, retiravam o convite. "Isso dói um pouquinho", ele lembra, anos depois. "Aí todo mundo falou ‘agora eu não posso mais falar de guerra, agora a gente tem que falar uma coisa mais tranquila’."
Hoje, o subgênero de funk com o qual começou a carreira, o proibidão, "está falido", diz MC Smith. "Hoje o trap tomou nosso espaço. Eles chegaram devagar, mas tomaram nosso espaço", acrescenta, falando sobre a nova vertente do rap. Segundo ele, os artistas do trap vêm, em geral, de famílias com condições melhores que as dos funkeiros do passado —e isso teria sido fundamental para a estruturação da hegemonia do gênero.
O caso não é exatamente uma exceção entre os funkeiros de proibidão. Na mesma época, MC Galo foi preso por associação ao tráfico. "Não bastasse a linguagem chula, ela enaltece a atividade do tráfico, enaltece o poderio bélico do tráfico", disse o delegado do caso, Fernando Veloso, à TV Record na época.
Casos semelhantes aos de MC Smith e MC Galo não são exatamente coisa do passado. Em 2020, MC Poze do Rodo foi preso acusado de integrar a maior facção criminosa do Rio de Janeiro, incitar a violência, promover o grupo criminoso e participar de shows pagos pelo tráfico. Meses antes no ano passado, o DJ Rennan da Penha foi condenado, em segunda instância, por associação para o tráfico de drogas —o que ele nega.
Em 2023, na Baixada Santista, um jovem de 21 anos foi preso por causa de uma música em que ironiza a morte de um policial. Após uma semana, postou um vídeo se desculpando. "Estou arrependido de coração. Sou uma pessoa de bem, trabalho, sonho em ser MC."
"Como a pena de prisão é a mais grave, você tem que ter muito mais garantias processuais do que você teria se estivesse sendo processado no âmbito trabalhista ou cível. A pessoa tem que ser acusada por uma conduta bastante clara e objetiva", diz Danilo Cymrot, o pesquisador.
A apologia está entre os chamados crimes contra a paz pública e, diferentemente de um homicídio ou roubo, não tem resultados tão objetivos. "Como você sabe se a paz pública foi violada? Para algumas pessoas pode ter sido e, para outras, não. A interpretação vai variar conforme a pessoa que está lendo."
"Por isso que é tão importante haver uma democratização do poder Judiciário. Se todos os juízes vêm do mesmo estrato social, vão julgar conforme os valores da sua classe, do seu grupo", afirma Cymrot, que também é advogado.
Volta e meia o Legislativo também tenta criar leis que criminalizam o funk. Em 2017, o Senado recebeu uma sugestão legislativa com esse objetivo. Aproximadamente 50 mil cidadãos votaram a favor do projeto. A sugestão foi rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.
Em 2020, a deputada Katia Sastre, do PL, apresentou um projeto de lei que acrescentava detalhes aos artigos do Código Penal sobre incitação e apologia de crime. O texto sugerido era "incorre nas mesmas penas aquele que se utiliza de manifestações artísticas para a prática do crime previsto neste artigo". O projeto não foi para frente.
Eu e o meu eu lírico
"Me parece que há uma dificuldade muito grande de algumas pessoas entenderem o que é o eu lírico, o que é uma fantasia, o que é um registro, o que é um relato, o que é uma música a partir das experiências de outras pessoas e o que é uma realidade de fato", afirma a historiadora Juliana Bragança, autora do livro "Preso na Gaiola", sobre a criminalização do funk. De acordo com ela, o processo de criminalização e a tentativa de censura do funk tem muito mais a ver com quem produz, quem consome e onde está o funk do que com o conteúdo das letras propriamente dito.
"Se fossem outros artistas, em outros ritmos, mas com discurso semelhante, será que iam achar que o artista estava vivendo aquilo que ele estava cantando?", ela questiona. "Não tenho dúvidas de que a censura que o funk sofre tem uma camada de racismo e classismo."
"Aquilo é uma obra de arte, então tem muito de fantasia. E, claro, muitas vezes as letras são inspiradas em fatos reais. Mas o artista muitas vezes exagera, mistura ficção e realidade, pega a história de uma outra pessoa e canta como se fosse a própria história", diz Cymrot, para quem a principal dificuldade que o funk tem é justamente se afirmar como uma obra artística que deve, portanto, ser respeitada pela sociedade.
"O Brasil precisa amadurecer a noção de liberdade artística tanto no campo cultural e artístico quanto para as autoridades, no institucional", diz Guilherme Varella, da Universidade Federal da Bahia.
Segundo Varella, as noções de liberdade de imprensa, cátedra e manifestação já foram mais desenvolvidas na sociedade e nas instituições brasileiras. "No entanto, a liberdade artística ainda é incipiente do ponto de vista do seu desenvolvimento jurídico. Fala-se muito pouco, discute-se pouco."
Quando esse direito fundamental entra em conflito com outros direitos que são mais tradicionalmente desenvolvidos, a liberdade artística é subjugada. Outros argumentos, normas e leis acabam sendo usados para tentar fazer sucumbir a liberdade artística —e aí a corda arrebenta do lado mais fraco.
Ao longo da última década, foram vários os exemplos desse desequilíbrio jurídico para além do universo do funk.
Há sete anos, a mostra "Queermuseu", em Porto Alegre, foi cancelada após ter sido acusada de pedofilia e blasfêmia.
Há cerca de três anos, em Juiz de Fora, em Minas Gerais, um vereador bolsonarista, Sargento Mello Casal, do PL, encabeçou uma ação popular que pedia o fechamento da exposição "Democracia em Disputa", com obras na fachada do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas.
A exposição reunia fotografias de momentos da história brasileira, como a ditadura militar, a campanha das Diretas Já e o impeachment da presidente Dilma Rousseff, do PT. O juiz argumentou que os painéis expostos aviltavam a propriedade pública —o imóvel é tombado pelo patrimônio municipal.
Há dois anos, o ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, classificou como propaganda eleitoral manifestações de Pabllo Vittar a favor de Lula no palco do Lollapalooza, em São Paulo, numa decisão que ameaçou fechar o festival e depois foi revertida.
A peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", em que a atriz travesti Renata Carvalho interpreta Cristo, chegou a ter as suas apresentações todas canceladas depois de decisões judiciais.
A performance "La Bête", de Wagner Schwartz, foi alvo em 2018 de protestos e ameaças após uma criança tocar a canela do artista, que fica nu durante o espetáculo. Schwartz teve de ir até a delegacia para prestar depoimento.
"O Avesso da Pele", romance de Jeferson Tenório que discute o racismo, acabou sendo recolhido de escolas no país.
Bandida
MC Carol diz que algumas pessoas, quando entram em seu camarim após um show, levam um susto. Há quem pergunte se ela está passando mal. "Porque eu sou uma pessoa calada, quieta. Não xingo em casa, gosto de silêncio. Moro num lugar zen, silêncio", diz a artista, fazendo um sinal de paz e amor. Já no palco, diz, ela incorpora um personagem "que bebe, fuma, gosta de barulho, bagunça".
Apesar de não ter sido presa, ela conta já ter se sentido perseguida. Ela lembra que circulava em grupos de WhatsApp de policiais de Niterói, no Rio de Janeiro, uma foto sua em que portava uma arma cenográfica, nos bastidores de um videoclipe que havia gravado. Ela então foi parada numa blitz do Exército —era época de intervenção federal no estado e Carol se lançava na política.
"Eram tipo dez fuzis apontados para para mim. Eles estavam xingando muito, agressivos, todos encapuzados. Queriam esculachar, botar terror. Tanto que nem revistaram o carro", conta. Assim que a liberaram, ela diz que um deles cantou "Jorginho me Empresta a 12", uma de suas músicas mais famosas.
"Só que, quando liberaram a gente, ficaram nos seguindo", diz ela, que se dirigiu a uma região próxima à praia, onde haveria câmeras de segurança. "Fiquei esperando, sem saber para onde ir."
Mesmo concordando que os funkeiros homens são os alvos preferenciais das prisões e de ações mais truculentas da polícia, Carol diz que a liberdade de expressão artística é ainda menor para as mulheres no funk. Isso porque, ela afirma, as artistas não costumam ter o mesmo espaço que os homens tanto no funk quanto no trap. "Elas não podiam nem estar nos lugares, subir no palco. Quantas mulheres talentosas que cantam funk, trap, não têm oportunidade porque o mercado só dá oportunidade para os homens?", questiona a artista.
"Quando eu comecei, não tinha funk em casamento, em festa de 15 anos, no Rock in Rio, no Lollapalooza", diz ela, que se apresentou no Rock in Rio pela terceira vez neste ano. "Consigo ver uma melhora. Só que existe muito para melhorar. Eu não vou me contentar com o que melhorou. Quero estar no mesmo patamar que os caras estão."
Colaborou Yuri Eiras