Partiu da Casa Civil a ordem para que os ministérios do governo Lula votassem contra a resolução do Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) com diretrizes sobre o atendimento de aborto legal a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, publicada nesta quarta-feira (8) no Diário Oficial da União
O documento, que está no centro de um imbróglio jurídico e político, foi aprovado em 23 de dezembro, com 15 votos favoráveis, dados por conselheiros da sociedade civil, e 13 votos contrários, de representantes do governo federal.
A resolução estabelece protocolos para a interrupção da gestação, com a prioridade de crianças e adolescentes nos serviços de aborto legal, "sem a imposição de barreiras sem previsão legal", e afirma que o acesso a informações claras e imparciais sobre interrupção da gestação é direito da criança e do adolescente, "sendo vedada conduta diversa com base em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais".
A Folha apurou que a orientação da Casa Civil foi dada em uma reunião apenas dos representantes do governo, no dia 20 de dezembro, e causou mal-estar entre os conselheiros, muitos dos quais têm ligações com movimentos de mulheres e pretendiam votar a favor do texto.
Segundo presentes, a posição foi repassada por Amarildo Baesso, suplente da Casa Civil no Conanda, informando que não haveria espaço para divergência dentro do governo. A reunião teria levado conselheiras às lágrimas.
Durante a reunião de 23 de dezembro, a conselheira Pilar Lacerda, secretária nacional dos direitos da criança e do adolescente do MDH (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania), apresentou pedido de retirada de pauta da minuta da resolução, o que foi rejeitado pela maioria dos conselheiros.
Após a derrota do pedido de retirada de pauta, o conselheiro Amarildo Baesso, que representava a Casa Civil comandada por Rui Costa, entrou com novo pedido de vista. A medida foi vista por integrantes do conselho como uma manobra regimental.
A reunião antes do Natal era a última possibilidade de votar a resolução antes da troca de mandato na presidência do Conanda, que é alternada entre sociedade civil e governo. O presidente do Conanda possui voto com peso duplo.
Em 2024, o conselho foi presidido pelo Conselho Federal de Psicologia, representado por Marina de Pol Poniwas. Caso o pedido de vista fosse acatado, o texto só poderia ser pautado novamente durante a gestão deste ano, em que o comando pertence ao governo.
Como o governo já havia feito um pedido de vistas anterior, em reunião do dia 2 de dezembro, a assembleia decidiu em votação não acatar o novo adiamento. A votação seguiu adiante e a resolução foi aprovada.
O MDH publicou nota após a votação afirmando que parecer da consultoria jurídica do órgão indicou que a resolução apresentava definições que só poderiam ser dispostas em leis.
No dia seguinte, em 24 de dezembro, a Justiça federal suspendeu a publicação da resolução, acatando mandado de segurança impetrado pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF). Em uma parceria improvável, a ex-ministra do governo Bolsonaro usou o pedido de vista realizado pela Casa Civil de Lula para argumentar contra a validade da votação.
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A Folha telefonou nesta quarta-feira (8) para o conselheiro Baesso. Ele não quis se manifestar sobre o pedido de vista e a informação de que a ordem para votar contra a resolução tivesse partido da Casa Civil e encerrou a ligação.
O ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente Ariel de Castro Alves, que é ex-presidente do Conanda, afirmou que divergências públicas não são comuns no conselho, que costuma aprovar resoluções por unanimidade.
Ele também apontou estranheza no fato de que o recurso contra a decisão que suspendeu a resolução tenha sido apresentado pela ONG Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) e não pela AGU (Advocacia-Geral da União).
"Afinal, se trata de uma decisão majoritária de um órgão do governo", afirma Alves. "Isso mostra o quanto o governo está boicotando essa resolução."
Na segunda-feira (6), o juiz Ney Bello, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal), acatou o recurso e determinou a publicação da resolução, que foi oficializada no Diário Oficial da União desta quarta-feira (8).
Procurado, o MDH reafirmou o posicionamento da nota publicada em 23 de dezembro. Além de Amarildo Baesso, a Casa Civil foi procurada através de sua assessoria de imprensa, mas até a publicação desta reportagem ainda não havia se posicionado.
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