Uma das maiores surpresas na história do Festival de Veneza foi quando "Coringa", de Todd Phillips, ganhou o Leão de Ouro, há cinco anos. Poucos pensavam que um longa protagonizado por um personagem de HQ venceria o prêmio máximo, ainda mais sob um júri presidido pela argentina Lucrecia Martel, uma diretora conhecida por um cinema de caráter mais sisudo.
Cinco anos depois, Phillips retorna ao festival, em disputa novamente, com a aguardadíssima continuação "Coringa: Delírio a Dois". Joaquin Phoenix volta a interpretar o vilão que gargalha em momentos em que se esperaria uma postura séria, desta vez acompanhado em cena de Lady Gaga e sua personagem, com quem se envolve. O filme poderá ser visto pelo público em 3 de outubro.
O filme começa com Arthur Fleck, o Coringa quando vestido à paisana, internado em uma instituição prisional psiquiátrica, à espera do julgamento que vai decidir se irá para uma prisão tradicional. No primeiro filme, ele termina detido após assassinar cinco pessoas, inclusive um apresentador de TV que o humilhou diante de todo o país, e apesar da detenção torna-se um ídolo.
A advogada de Arthur o aconselha a reforçar para o júri seu desequilíbrio mental, afirmando que sofreu muitos traumas na vida, ao ponto de desenvolver como escape uma personalidade vingadora, o Coringa, e que ele e Arthur são instâncias diferentes no mesmo corpo.
Um dia, Arthur conhece na instituição a jovem Lee Quinn, papel de Gaga, que diz ser sua admiradora. Ela flerta com ele e o aconselha a agir de modo oposto ao que prega a advogada: seria melhor ele reconhecer que Arthur e Coringa são um ser apenas, o que inclusive lhe traria mais adoração de seus apoiadores.
O filme é bastante distinto do primeiro, em que havia um crescendo de tensão, até o momento do clímax do programa de TV. Desta vez, a trama é mais arrastada, às vezes pontuada por números musicais, em geral imaginados por Arthur.
Entre as canções, estão "Close to You", dos Carpenters, e "If You Go Away", versão em inglês de "Ne me Quitte Pas", de Jacques Brel. Mas a melodia que várias vezes surge, compondo um leitmotiv, é "That’s Entertainment", do longa "Roda da Fortuna", de 1953.
É surpreendente o quanto Phillips parece desinteressado em providenciar bons trechos musicais, todos de uma falta de inspiração decepcionante. Mesmo as cenas em que Coringa entra no centro das atenções —como no julgamento, quando decide fazer sua própria defesa—, a impressão que se tem é de que o filme está sempre fugindo de seu caráter espetacular.
Não é uma continuação que prolongue o anterior. Segue em sentido oposto. É como se Phillips tivesse percebido que o primeiro longa talvez tenha sido uma alegoria mal interpretada por parte do público —a figura agressiva do Coringa, que no primeiro longa é reverenciada pela população, não funcionou como um alerta para o mundo real.
Afinal, muita gente, apesar de ter gostado do filme, reproduziu comportamentos de adoração de figuras saudadas como autênticas, mas com discursos preconceituosos e pregadores de violência, assim como os admiradores do Coringa no longa original. É como se "Delírio a Dois" dissesse que gente como Coringa deve ser tudo, menos um espetáculo. A recorrência irônica da canção "That’s Entetainment", ou isso é entretenimento, certamente não é à toa.
Phoenix está brilhante novamente, ainda que seu personagem não passe por um processo de evolução desta vez. Já Gaga surge sem brilho, em um papel que na verdade tem pouco a oferecer.
Talvez alguma atriz de verdade conseguisse extrair alguma coisa interessante de Lee, que seria o primórdio da Arlequina, mas que no filme é totalmente indefinida. Não é sequer uma personagem de verdade, funcionando mais como uma aparição para influenciar Arthur negativamente —como um diabinho que sopra em seu ouvido o que ele não deveria dizer ou fazer.
Resta alertar que o título faz o espectador comprar gato por lebre. No jargão criminal, "folie à deux" é a situação em que duas pessoas se unem, uma fomentando na outra a necessidade de cometerem um crime. Em uma espiral de ódio, delírio e paranoia, a dupla acaba planejando uma atuação criminal conjunta —no Brasil, um caso conhecido foi o de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, quando arquitetaram o assassinato da atriz Daniela Perez, em 1992.
No filme de Phillips, não há nada nem próximo a uma loucura a dois desse tipo —os personagens de Gaga e Phoenix não chegam sequer a ter um plano destrutivo comum ou mesmo um inimigo a ser eliminado. Por fim, o inimigo é o próprio Coringa, cujo desfecho nada mais é do que a colheita daquilo que ele mesmo semeou. Phillips é claríssimo em seu recado desta vez.