Brasileira chefe de IA na Microsoft diz que recuo de big techs em diversidade é 'triste' retrocesso e prejudica mulheres no setor

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Era meados de 2012 quando a carioca Gabriela de Queiroz, 44, desembarcou na Califórnia para o segundo mestrado. Ela queria aprender os termos técnicos em inglês da sua área de formação: estatística. Nem imaginava que se tornaria cientista de dados da IBM e que, no futuro, ocuparia o cargo de diretora de inteligência artificial na Microsoft.

Até porque, com as "idas e vindas" da graduação na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), acabou se formando aos 30, considerada por muitos uma idade tardia para colocar o capelo. Também fez uma pesquisa sobre epidemiologia na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), área distante da que atua agora.

Em território americano, não fosse o site Meet Up o caminho acadêmico teria sido mais difícil. "Mudou a minha vida", diz ela. Pela plataforma, cientista de dados, estatísticos e alunos marcavam encontros em que discutiam técnicas de Python, R, SQL, e outras linguagens computacionais complexas. Gabriela participou de vários.

Inspirada por essas reuniões, ela mesma chegou a criar dois grupos de inclusão de mulheres na tecnologia, o R-Ladies e o AI Inclusive. Queria aumentar a presença delas num ambiente majoritariamente masculino.

Mas hoje, no centro de tomadas de decisões tecnológicas do Vale do Silício, Gabriela tem sentido um clima "tenso e instável" à medida que big techs recuam em iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês).

"Fiquei muito triste e preocupada com as novas gerações. Esses grupos foram essenciais para que muitas de nós tivéssemos oportunidades, seja de acesso ao conhecimento, seja de uma rede de apoio. Sem essas iniciativas, nada disso teria sido possível para mim e para muitas", diz.

Após o assassinato de George Floyd em 2020, uma onda de ações corporativas de DEI foi lançada, o que levou as empresas a pensar mais cuidadosamente sobre quem contratavam e promoviam.

No entanto, grandes empresas americanas, incluindo as big techs, como Meta e Google, estão voltando atrás, extinguindo ou afrouxando suas políticas de DEI em meio a um aumento da pressão conservadora com a eleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e na esteira da decisão de 2023 da Suprema Corte de encerrar ações afirmativas em admissões universitárias.

"Espero que essas mudanças não sejam definitivas, mas, pelo menos nos próximos anos, parece que vão ser. Tivemos anos de avanço e, agora, demos vários passos para trás. A sensação é de que teremos que refazer todo o caminho, refazer todo o processo do zero", diz Gabriela.

Com ela concorda Camila Achutti, cofundadora e CEO da Mastertech, escola de tecnologia e negócios digitais, e fundadora da ONG Somas, que se dedica à inclusão digital e formação de professores e jovens em situação de vulnerabilidade.

"Times diversos criam produtos de maior qualidade e confiabilidade. Com o arrefecimento disso, o panorama é de verdadeiro terror", afirma.

Segundo Achutti, é preciso maior presença feminina na construção de modelos tecnológicos mais justos e equilibrados. Mas a realidade aponta para um cenário distante.

No Brasil, por exemplo, as mulheres representam 64% dos trabalhadores que treinam sistemas de IA. O trabalho envolve classificar manualmente informações, como imagens ou textos, para que os modelos de IA possam aprender a reconhecer padrões.

Apesar de ser uma função essencial, é uma das mais mal remuneradas dentro da indústria de IA. Muitas vezes, essa atividade é terceirizada para países do sul global, como China e Índia, e realizada por uma mão de obra desvalorizada.

No recorte de gênero, há um número significativo de mulheres nessas funções básicas, como no caso brasileiro, enquanto a presença em cargos de liderança, pesquisa e desenvolvimento continua sendo mínima.

Segundo dados da Unesco, mulheres são apenas 12% dos pesquisadores de inteligência artificial no mundo e apenas 6% dos programadores que existem.

"Se queremos mudar a forma como vemos e utilizamos a tecnologia, com padrões éticos e morais sólidos não adianta apenas ter treinadoras de IA ou uma mão de obra barata e subvalorizada", diz Achutti.

Na avaliação de Luciana Lima, diretora de crescimento e líder de projetos de IA da A3 Data, que desenvolve soluções tecnológicas e de inteligência de dados para empresas, um time diverso no desenvolvimento de tecnologias é importante para mitigar riscos.

"Sem uma equipe diversa no desenvolvimento dessas tecnologias, há um risco maior de que os algoritmos reproduzam preconceitos e tomem decisões prejudiciais para determinados grupos. Se os responsáveis por criar esses sistemas compartilham o mesmo perfil, é provável que suas visões de mundo e experiências de vida influenciem os resultados gerados pela IA, sem levar em conta diferentes contextos".

Para Dora Kaufman, professora do programa de tecnologias da inteligência e design digital da PUC-SP e autora do best-seller "Desmistificando a Inteligência Artificial", a diversidade na composição das equipes é de fato uma das formas mais eficazes de reduzir problemas nos sistemas tecnológicos, como os vieses em IA que reproduzem estereótipos de gênero, racismo e xenofobia.

"Pessoas negras, mulheres e diferentes grupos sociais aumentam a chance de que esses modelos sejam construídos levando em conta diferentes perspectivas", afirma.

Kaufman destaca que nos últimos anos houve esforços para criar estruturas de proteção e regulamentação, mas essas iniciativas foram enfraquecidas com a chegada do governo Trump, que desmontou rapidamente diversas regulamentações que buscavam impor algum controle sobre essas empresas.

Trump já deixou claro seus ataques aos programas de diversidade, equidade e inclusão. No seu segundo dia no cargo, ele instruiu as agências a identificar alvos para "investigações de conformidade civil" relacionadas às suas práticas de DEI, e erradicou esforços do tipo por parte do governo federal.

"O ocidente é comandado, liderado e controlado por poucas empresas americanas, as chamadas big techs, grandes empresas de tecnologia. Essa centralização influencia a forma como a inteligência artificial é desenvolvida e aplicada no mundo. E o que temos hoje são várias estruturas sendo desfeitas", diz Kaufman.

Na perspectiva de Ana Barroso, head de design da A3 Data e desenvolvedora de projetos para ampliar a visibilidade feminina no setor, o contexto de recuo big techs e decisões do governo Trump podem ter um impacto positivo no resto do mundo.

"Vejo uma possível tendência de criação de um mercado de tecnologia mais regionalizado, com características próprias e menos dependente das grandes potências. O isolamento dos Estados Unidos sob o governo Trump pode influenciar o desenvolvimento de ecossistemas tecnológicos mais alinhados às realidades locais."

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