Brasil teria 'festivais' de verão com peixada e bebida alcoólica há mais de 1.200 anos

há 3 semanas 5

Uma equipe internacional de pesquisadores pode ter encontrado o que restou de grandes peixadas pré-históricas promovidas pelos construtores dos chamados cerritos (morros artificiais e outras estruturas de terra batida que se espalhavam pela região próxima à fronteira entre o Brasil, o Uruguai e a Argentina).

Analisando quimicamente o que sobrou de artefatos de cerâmica achados em dois cerritos da região da lagoa dos Patos, perto de Pelotas (Rio Grande do Sul), os cientistas identificaram indícios de cozimento ou de outros tipos de preparo de peixes, recurso alimentar abundante na região.

Ao mesmo tempo, há sinais de que outros vasos poderiam ter sido usados para a fermentação de bebidas alcoólicas, talvez à base de milho, como acontecia em outras culturas nativas antes da chegada dos europeus.

A hipótese dos pesquisadores é que o preparo intensivo dos peixes e da bebida seguia um ritmo sazonal, acompanhando a maior abundância de pescado durante os meses de verão e reunindo habitantes dos cerritos e de regiões vizinhas em "festivais" periódicos.

Os dados foram publicados no último dia 5 no periódico científico de acesso livre PLoS ONE. Assinam o trabalho, entre outros pesquisadores, André Carlo Colonese, da Universidade Autônoma de Barcelona, e Rafael Guedes Milheira, da Universidade Federal de Pelotas.

Os cerritos aparecem em território brasileiro, uruguaio e argentino a partir de uns 5.000 anos atrás. São característicos do pampa (o ambiente de vegetação aberta dessa região) e costumam estar associados a ambientes costeiros ou estuarinos (grosso modo, a zona de contato entre o mar e a água doce, como é o caso da lagoa dos Patos).

Ainda não se sabe com certeza a função dessas estruturas artificiais, que poderiam chegar a vários metros de altura. As hipóteses que vão da presença de antigas aldeias a construções feitas para cerimônias. O certo, porém, é que áreas como a grande lagoa gaúcha eram particularmente interessantes para os antigos habitantes do pampa por causa da riqueza de recursos alimentares, em especial os pesqueiros.

"As análises zooarqueológicas [ou seja, dos restos de animais nos sítios] já demonstraram que 93% da biomassa consumida por esses grupos era proveniente da pesca, e outros dados confirmam que as principais fontes de proteína eram peixes marinhos ou estuarinos", contou Colonese à Folha.

No novo estudo, ele e seus colegas usaram brocas para perfurar fragmentos de cerâmica de dois cerritos na área de Pontal da Barra. Obtendo cerca de 1 g de cerâmica pulverizada por esse processo, a ideia era tentar identificar moléculas provenientes de plantas ou animais que, outrora, tinham sido armazenados ou cozinhados nos vasos. As datações nesses dois cerritos indicam idades similares para a presença humana ali, que vão mais ou menos de 2.300 anos a 1.200 anos atrás.

Os resultados mostraram diferenças intrigantes no processamento da comida. Muitos fragmentos revelaram a presença de moléculas orgânicas alteradas pelo cozimento em diferentes temperaturas.

Mas havia uma separação bastante clara entre um grupo de vasos em que havia clara presença de lipídios (gorduras) típicos de animais aquáticos e outro em que diferentes plantas, entre as quais o milho, eram processadas, com predominância das cerâmicas marcadas pela preparação de peixes.

Além disso, no caso dos possíveis vasos com milho, foi identificada a presença de moléculas derivadas de micróbios associados à fermentação, justamente o processo importante para a produção de bebidas alcoólicas.

Daí a ideia de que estaria ocorrendo a captura em grande escala de peixes que desovam no verão, como a corvina e a miraguaia, típicos da região, como aponta Colonese. Para usar essa bonança de maneira mais parcimoniosa ao longo do ano, os peixes seriam rapidamente cozidos ou mesmo fermentados, e a estação de peixes gordos seria comemorada também com o consumo de bebidas alcoólicas.

Segundo o pesquisador, há datas bem mais recentes para a ocupação dos cerritos, algumas chegando a cerca de 200 anos atrás, em sítios no estuário da lagoa dos Patos, no canal São Gonçalo e no banhado do Taim. Tudo indica que há uma conexão entre os construtores das estruturas e povos do pampa com os quais os colonizadores tiveram contato direto, como os charrua e minuano.

Leia o artigo completo